O MÁRTIR
DAS
CATACUMBAS
Um
episódio da Roma antiga
Autor
desconhecido
Tradução
do espanhol realizada por Daniela Raffo,
Terminada
em segunda-feira, 14 de janeiro de 2008, 12:11:04
Baixado
da Internet de www.graciasoberana.com
PREFÁCIO
Muitos anos atrás foi
publicada uma história anônima intitulada "O mártir das catacumbas: Um
episódio da Roma antiga". Um exemplar foi providencialmente resgatado
de um barco de vela americano e ficou em poder do filho do capitão Richard
Roberts, quem comandava aquela nave e que teve de abandoná-la em alto mar como
conseqüência do desastroso furacão acontecido em janeiro de 1876.
Cuidadosamente reimpressa,
apresentamos aqui aquela obra, tendo sido zelosamente fiéis ao original ainda
em seu título. Tiramos à luz esta edição, animados da viva esperança de que o
Senhor vai usá-la para fazer ver aos fiéis que reflexionam, assim como também
aos descuidados e desprevenidos e a seus descendentes nestes últimos dias maus,
este palpitante quadro de como sofreram os santos dos primeiros tempos pela sua
fé em nosso Senhor Jesus Cristo, sob uma das persecuções mais cruéis da Roma
pagã, e que num futuro não muito distante podem-se repetir com a mesma
intensidade da ira satânica, mediante o mesmo Império Romano de iminente
nascimento.
Tomara possa despertar nossa
consciência ao fato de que, se o Senhor demora em sua vinda, temos de ver-nos
no imperativo de sofrer por Ele, que voluntariamente tanto sofreu por nós.
A Bíblia já não ocupa o
legítimo lugar que lhe corresponde em nossas escolas e universidades; a oração
familiar é um hábito perdido; nosso Senhor Jesus Cristo, o unigênito e
bem-amado Filho do Deus vivente, é desacreditado e desonrado precisamente em
casa daqueles que professam ser seus amigos; o testemunho no corpo desapareceu
da terra; não se obedece o chamado a Laodicea para o arrependimento; e é assim
que a promessa do Senhor da comunhão com Ele está livrada somente ao indivíduo.
E ainda nestes dias pode
alcançar-nos a promessa, a Esmirna: "Sê fiel até à morte, e
dar-te-ei a coroa da vida".
O
sangue dos mártires de Rússia e Alemanha clama desde a terra, qual admoestação
para os cristãos de todos os paises.
Mas ainda podemos arrancar de
nossas almas o clamor anelante: "Vem, Senhor Jesus; vem pronto".
Hartsdale, N. Y.
Richard L. Roberts
CAPÍTULO 1
O COLISEU
Cruel carnificina para
diversão dos romanos.
Era um dos grandes dias de
festa em Roma. De todos os extremos do país as pessoas convergiam para o
destino comum. Recorriam o Monte Capitolino, o Fórum, o Templo da Paz, o Arco
de Tito e o palácio imperial em seu desfile interminável até chegar no Coliseu,
no qual penetravam pelas inumeráveis portas, desaparecendo no interior.
Ali se encontravam frente a
um cenário maravilhoso:na parte inferior a arena interminável se estendia rodeada
por incontáveis fileiras de assentos que se elevavam até o topo da parede
exterior que beirava os quarenta metros. Aquela enorme extensão estava
totalmente coberta por seres humanos de todas as idades e classes sociais. Uma
reunião tão vasta, concentrada de forma tal, na que somente se podiam
distinguir longas fileiras de rostos feros, que iam-se estendendo
sucessivamente, constituía um formidável espetáculo que em nenhuma parte do
mundo pôde ser igualado, e que tinha sido ideado, sobre tudo, para aterrorizar
e infundir submissão na alma do espectador. Mais de cem mil almas haviam-se
reunido aqui, animadas por um sentimento comum, e incitadas por uma única
paixão. Pois o que as havia atraído a este lugar era uma ardente sede do sangue
de seus semelhantes. Jamais se achará um comentário mais triste desta alardeada
civilização da antiga Roma, que este macabro espetáculo criado por ela.
Ali estavam presentes
guerreiros que tinham combatido em distantes campos de batalha, e que conheciam
muito bem o que eram atos de coragem; porém, não sentiam a menor indignação
diante das cenas de covarde opressão que se desenvolviam perante seus olhos.
Nobres das antigas famílias estavam ali presentes, mas não tinham olhos para
ver nestas exibições cruéis e brutais o estigma sobre a honra de seus pátria.
Por sua vez os filósofos, os poetas, os sacerdotes, os governadores, os
elevados, assim também como os humildes da terra, atestavam os bancos; mas os
aplausos dos patrícios eram tão sonoros e ávidos como os dos plebeus. Que
esperança havia para Roma quando os corações de seus filhos estavam
integramente entregues à crueldade e à opressão mais brutal que se possa
imaginar?
O trono elevado sobre um
lugar proeminente do enorme anfiteatro estava ocupado pelo Imperador Décio, a
quem rodeavam os principais dos romanos. Entre estes se podia contar um grupo
da guarda pretoriana, que criticavam os diferentes atos da cena que se
desenvolvia em sua presença com ar de expertos. Suas gargalhadas estridentes,
seu alvoroço e sua esplêndida vestimenta os fazia objeto de especial atenção de
parte de seus vizinhos.
Já se haviam apresentado
vários espetáculos preliminares, e era hora de começarem os combates.
Apresentaram-se vários combates mão a mão, a maioria dos quais teve resultados
fatais, despertando diferentes graus de interesse, segundo o valor e habilidade
que demonstravam os combatentes. Tudo isso lograva o efeito de aguçar o apetite
dos espectadores, aumentando sua veemência, enchendo-os do mais ávido desejo
pelos eventos ainda mais emocionantes que iriam se seguir.
Um homem em particular tinha
despertado a admiração e o frenético aplauso da multidão. Tratava-se de um
africano de Mauritânia, cuja complexão e fortaleza eram de gigante. Porém sua
habilidade igualava sua fortaleza. Sabia brandir sua curta espada com destreza
maravilhosa, e cada um dos rivais que até o momento tivera jaziam mortos.
Chegou o momento em que devia
medir-se com um gladiador de Batava, homem ao qual somente ele igualava em
força e em estatura. Mas os separava um contraste sumamente notável. O africano
era tostado, de cabelo resplandecente e cacheado e olhos cintilantes; o de
Batava era de tez clara, cabelo loiro e de olhos vivíssimos de cor gris. Era
difícil dizer qual deles levava vantagem; tão acertado tinha sido o cotejo em
todo sentido. Contudo, como o primeiro havia estado lutando por algum tempo, se
pensava que tinha isso como uma desvantagem. Chegou, pois, o momento em que se
travou a contenda com grande veemência e atividade de ambas as partes. O de
Batava assestou tremendos golpes a seu rival, que foram detidos graças à viva
destreza daquele. O africano era ágil e estava furioso, mas nada podia contra a
fria e sagaz defesa de seu vigilante adversário.
Finalmente, a um sinal dado,
foi suspenso o combate, e os gladiadores foram retirados, mas de nenhuma forma
diante da admiração ou comiseração dos espectadores, senão simplesmente pelo
sutil entendimento de que era o melhor modo de agradar o público romano.
Todos entendiam,
naturalmente, que os gladiadores voltariam.
Chegou então o momento em que
um grande número de homens foi conduzido à arena. Estes ainda estavam armados
com espadas curtas. Nem tinha ainda se passado um instante, quando já eles
tinham começado o ataque. Não era um conflito de dois bandos opostos, senão uma
contenda geral, na qual cada um atacava seu vizinho. Tais cenas chegavam a ser
as mais sangrentas, e portanto eram as que mais emocionavam os espectadores. Um
conflito deste tipo sempre destruiria o maior número no menor tempo. A arena
apresentava o cenário da confusão mais horrível. Quinhentos homens na flor da
vida e fortaleza, armados de espadas, lutavam em cega confusão uns contra os
outros. Algumas vezes se trançavam numa massa densa e enorme; outras vezes se
separavam violentamente, ocupando todo o espaço disponível, rodeando uma pilha
de mortos no centro do campo. Porém, na distância, se assaltavam de novo com
indeclinável e sedenta fúria, chegando a travar-se combates separados em toda a
volta do macabro cenário; o vitorioso em cada um corria pressuroso a tomar
parte nos outros, até que os últimos sobreviventes se encontravam novamente
empenhados num cego combate massivo.
No final, as lutas agônicas
pela vida ou a morte se tornavam cada vez mais fracas. Somente uns cem ficavam
dos quinhentos que começaram, a qual mais extenuado e ferido. Repentinamente se
deu um sinal e dois homens pularam na arena e se precipitaram desde extremos
opostos sobre esta miserável multidão. Eram o africano e o de Batava. Já
frescos depois do repouso, caiam sobre os infelizes sobreviventes que já não
tinham nem o espírito de se combinarem, nem a força para resistir. Tudo se
reduzia a uma carnificina. Estes gigantes matavam a destra e sinistra sem
misericórdia, até que ninguém além deles ficou em pe no campo da morte e ouviam
o estrondo do aplauso da multidão.
Estes dois novamente
renovaram o ataque um contra o outro, atraindo a atenção dos espectadores,
enquanto eram retirados os despojos miseráveis dos mortos e feridos. O combate
voltava a ser tão cruel como o anterior e de invariável similitude. À agilidade
do africano se opunha a precaução do de Batava. Porém, finalmente, aquele
lançou uma desesperada investida final; o de Batava o parou e com a velocidade
do relâmpago devolveu o golpe. O africano retrocedeu agilmente e soltou sua
espada. Era demasiado tarde, porque o impacto de seu inimigo tinha-lhe
traspassado o braço esquerdo. E conforme caiu, um alarido estrondoso de
selvagem regozijo surgiu dos milhares de assim chamados seres humanos. Mas isto
não devia considerar-se como o fim, porque enquanto ainda o conquistador estava
sobre a sua vítima, o pessoal de serviço se introduziu depressa na arena e o
tirou. Contudo tanto os romanos como o ferido sabiam que não se tratava de um
ato de misericórdia. Somente se tratava de reservá-lo para o aziago fim que lhe
esperava.
— O de Batava é um hábil
lutador, Marcelo — comentou um jovem oficial com seu companheiro da
concorrência da qual já se falou.
— Verdadeiramente o é, meu
querido Lúculo — replicou o outro— . Não creio ter visto jamais um gladiador
melhor que este. Em verdade os dois que se bateram eram muito melhores do
comum.
— Lá dentro têm um homem que
é muito melhor que estes dois.
— Ah! Quem é ele?
— O grande gladiador Macer.
Acho que ele é o melhor que jamais vi.
— Tenho ouvido alguma coisa
ao seu respeito. Achas que o colocarão nesta tarde?
— Entendo que sim.
Esta breve conversação foi
bruscamente interrompida por um tremendo rugido que atravessou os ares,
procedente do viveiro, ou seja, o lugar onde se mantinham encerradas as feras
selvagens. Foi um daqueles bramidos ferozes e terríficos que costumavam lançar
as mais selvagens das feras quando tinham chegado ao cúmulo da fome, que
coincidia com o mesmo grau de furor.
Não tardaram em abrir-se as
grades de ferro manejadas por homens desde cima, aparecendo o primeiro tigre à
espreita na arena. Era uma fera da África, desde onde tinha sido trazida não
muitos dias antes [1]. Durante três dias não havia
provado alimento algum, e assim a fome, juntamente com o prolongado encerro
tinham aguçado seu furor a tal extremo que somente olhá-lo aterrorizava.
Acoitando-se com a cauda recorria a arena olhando para acima, com sanguinários
olhos, para os espectadores. Porém a atenção destes não demorou em desviar-se
para um objeto distinto. No outro extremo de onde estava a fera foi arrojado na
arena nada menos que um homem. Não levava armadura nenhuma, senão que estava nu
como todos os gladiadores, com a única exceção de uma tanga. Portando em sua
destra a costumeira espada curta, avançou com dignidade e passo firme para o
centro do cenário.
Imediatamente todos os
olhares convergiram sobre esse homem. Os inumeráveis espectadores clamaram
freneticamente: "Macer! Macer!"
O tigre não demorou em vê-lo,
lançando um breve mas selvagem rugido que infundia terror. Macer, com
serenidade, permaneceu em pe com seu olhar tranqüilo mas fixo sobre a besta que
mexia a cauda com maior fúria a cada vez, dirigindo-se a ele. Finalmente o
tigre se encolheu, e desta posição, com o impulso característico se lançou num
pulo feroz sobre sua presa. Macer não estava desprevenido. Como um relâmpago
voou para a esquerda, e apenas o tigre havia caído em terra, quando lhe aplicou
uma estocada curta mas cortante e certeira no mesmo coração. Foi o golpe fatal
para a fera! A enorme besta se estremeceu da cabeça aos pés, e, encolhendo-se
para tirar toda a força de suas entranhas, soltou seu último bramido, que se
ouviu quase como o clamor de um ser humano, depois do qual caiu morta na arena.
Novamente o aplauso da
multidão se ouviu como o estrépito do trovão em todo o lugar.
— Maravilhoso! — exclamou
Marcelo— Jamais vi uma habilidade como a de Macer!
Seu amigo lhe respondeu,
retomando a conversa:
— Sem dúvida tem se passado a
vida lutando!
Pronto o corpo do animal
morto foi arrastado fora da arena, ao mesmo tempo que se ouvia o chirriar das
grades que se abriam novamente atraindo a atenção de todos. esta vez era um
leão. Se deslocou lentamente em direção oposta, olhando em seu redor o cenário
que o rodeava, em atitude de surpresa. Era este o exemplar maior de sua
espécie, todo um gigante em tamanho, tendo sido por longo tempo preservado até
lhe encontrar um adversário adequado. A simples vista parecia capaz de
enfrentar vitoriosamente dois tigres como o que lhe haviam precedido. A seu
lado Macer não era senão uma débil criatura.
O jejum desta fera tinha sido
prolongado, mas não mostrava a fúria do tigre. Atravessou a arena de um a outro
extremo, e depois todo em volta dela, numa espécie de trote, como se procurasse
uma saída de escape. Porém, achando todo fechado, finalmente retrocedeu até o
centro, e deitando o rosto no chão deixou ouvir profundo um bramido tão alto e
prolongado que as enormes pedras do mesmo Coliseu vibraram com o som.
Macer permaneceu imóvel. Nenhum
músculo de seu rosto mudo nem um pouco. Estava com a cabeça erguida com a
expressão vigilante e característica, aferrando sua espada em guarda.
Finalmente o leão se lançou sobre ele de cheio. O rei das feras e o rei da
criação se mantiveram frente a frente olhando-se aos olhos um ao outro. Mas o
olhar sereno do homem pareceu provocar a ira própria do animal. Ereta a cauda e
todo ele, retrocedeu; com a juba para trás, se agachou até o chão em preparação
para pular.
A enorme multidão se deteve,
encantada. Eis aí uma cena que merecia seu interesse.
A massa escura do leão se
lançou na frente, e outra vez o gladiador em sua habitual manobra pulou de lado
e lançou sua estocada. Porém, esta vez a espada como feriu uma das costelas e
caiu de suas mãos. O leão foi ferido ligeiramente, mas a pancada serviu só para
enaltecer sua fúria até o grau supremo.
Macer, porém, não perdeu nem
um ápice de sua característica calma e frialdade neste momento tremendo.
Perfeitamente desarmado, em espera do ataque, se plantou diante da fera. Uma e
outra vez o leão lançou ferozes ataques, e cada um foi evadido pelo ágil
gladiador, quem com seus hábeis movimentos se aproximava engenhosamente ao
lugar onde estava sua arma, até conseguir tomá-la novamente. E então, outra vez
armado de sua espada protetora, esperava o arranhão final da fera, que
respirava morte. O leão se arrojou como a vez anterior, mas esta vez Macer
acertou no alvo. A espada lhe traspassou o coração, a enorme besta caiu
contorcendo-se de dor. Pondo-se em pe começou a correr na arena, e trás um
último rugido agônico caiu morta junto às grades por onde tinha saído.
Agora Macer foi conduzido
fora da praça, vendo-se aparecer novamente o de Batava. Se tratava de um
público de gosto refinado, que demandava variedade. A este novo lutador lhe
soltaram um tigre pequeno, o qual foi vencido. Seguidamente foi solto um leão.
Este deu mostras de extrema ferocidade, embora seu tamanho não estava fora do
comum. Não cabia a menor dúvida que o de Batava não se igualava a Macer. O leão
se lançou sobre sua vítima, tendo sido ferido; porém, ao lançar-se pela segunda
vez ao ataque, aferrou seu adversário e literalmente o despedaçou. Então
novamente foi tirado Macer, para quem foi tarefa fácil acabar com o filhote.
E desta vez, enquanto Macer
permanecia em pe recebendo os intermináveis aplausos, apareceu um homem no lado
oposto. Era o africano. Seu braço nem sequer tinha sido vendado, mas pendia de
seu lado, completamente coberto de sangue. Se encaminhou hesitante para Macer,
com penosos passos de agonia. Os romanos sabiam que este tinha sido enviado
simplesmente para que fosse morto. E o desventurado também o sabia, porque
conforme se aproximou de seu adversário, jogou fora sua espada e exclamou numa
atitude mais bem de desespero:
— Mata-me rápido! Libera-me
da dor!
Todos os espectadores a uma
ficaram mudos de assombro ao ver Macer retroceder e deixar cair sua espada no
chão. Todos seguiam contemplando maravilhados até o máximo, silenciosos. E seu
assombro foi tanto maior quando Macer voltou para o lugar onde estava o
Imperador, e levantando as mãos bem alto clamou com voz clara, que alcançou a
todos:
— Augusto Imperador, eu sou
cristão! Eu pelejarei com feras silvestres, porém jamais levantarei minha mão
contra meus semelhantes, os homens, sejam da cor que sejam. Eu morrerei
gostoso, porém, eu não matarei!
Perante semelhantes palavras
e atitude se levantou um crescente murmúrio.
— O que quer dizer esse aí?
Cristão? Quando sucedeu a conversão? –perguntou Marcelo.
Lúculo respondeu:
— Soube que o haviam visitado
no calabouço os malditos cristãos, e que ele teria-se unido a essa desprezível
seita, na qual estão reunidas todas as fezes da humanidade. É muito provável
que se tenha feito cristão.
— E preferirá morrer antes
que lutar?
Assim costumam proceder
aqueles fanáticos.
A surpresa daquela ralé foi
substituída por uma ira selvagem. Os indignava que um mero gladiador se
atrevesse a decepcioná-los. Os lacaios se apressaram a intervir para que a luta
continuasse. Se em verdade Macer insistia em negar-se a lutar, deveria sofrer
todo o peso das conseqüências.
Porém a firmeza do cristão
era impassível. Absolutamente desarmado avançou até o africano, a quem poderia
ter matado simplesmente com um soco. O rosto do africano havia-se tornado
nesses breves instantes como o de um maluco endemoninhado. Em seus sinistros
olhos reluzia uma mistura de surpresa e louco regozijo. Recolhendo sua espada e
aferrando-a firmemente se dispus ao ataque com toda liberdade, afundando-a de
um só golpe no coração de Macer.
— Senhor Jesus, recebe meu
espírito! — saíram essas palavras entre a torrente de sangue em meio do qual
esta humilde porém ousada testemunha de Cristo deixou a terra, unindo-se ao
nobilíssimo exército de mártires.
— Costuma haver muitas cenas
como esta? — perguntou Marcelo.
— Assim é às vezes. Cada vez
que se apresentam cristãos. Eles enfrentam qualquer número de feras. As
mulheres caminham de frente desafiando leões e tigres, porém nenhum desses
loucos quer levantar sua mão contra outros homens. Este Macer tem desiludido
amargamente a nosso povo. Era o mais excelente de todos os gladiadores que se
tenham conhecido; porém, ao se converter em cristão, cometeu a pior das
bobagens.
Marcelo respondeu meditativo:
— Fascinante religião deve
ser aquela que leva um simples gladiador a proceder da forma que vimos!
— Já terás oportunidade de
contemplar muito mais que isto que te admira.
— Como assim?
— Não sabes? Estás
comissionado para desenterrar alguns desses cristãos. Introduziram-se nas
catacumbas e é necessário persegui-los.
— Qualquer um pensaria que já
têm suficiente. Somente esta manhã queimaram cinqüenta deles.
-E a semana passada degolaram
cem. Mas isso não é nada. A cidade íntegra tem-se convertido num enxame deles.
Mas o Imperador Décio [2] resolveu restaurar em toda
sua plenitude a antiga religião dos romanos. Desde que estes cristãos
apareceram, o império vai em vertiginosa declinação. Em vista disso ele se
propus aniquilá-los por completo. São a maior maldição, e como tal devem ser
tratados. Pronto chegarás a compreendê-lo.
Marcelo respondeu com
modéstia:
— Eu não tenho residido em
Roma o suficiente, e assim é que não compreendo o que os cristãos acreditam em
verdade. O que tem chegado aos meus ouvidos é que praticamente todo crime que
acontece é imputado a eles. Porém, no caso de ser como tu falas, hei de ter a
oportunidade de chegar a sabê-lo.
Nesse momento uma nova cena
chamou-lhes a atenção. Desta vez entro no cenário um ancião, de figura
inclinada e cabelo branco-prata. Era de idade muito avançada. Sua aparição foi
recebida com gritos de zombaria e escárnio, embora seu rosto venerável e sua
atitude digna até o extremo faziam presumir que era apresentado para despertar
admiração. Enquanto as risadas e alaridos de escárnio feriam seus ouvidos, ele
elevou sua cabeça ao mesmo tempo que pronunciou umas poucas palavras.
— Quem é ele?
— Esse é Alessandro, um
mestre da abominável seita dos cristãos. É tão obstinado que se nega a
desdizer-se...
— Silêncio. Escuta o que está
dizendo.
— Romanos — disse o ancião— eu
sou cristão. Meu Deus morreu para mim, e eu gozoso ofereço minha vida por Ele.
Um bronco uivo de gritos e
imprecações selvagens afogaram sua voz. E antes que aquilo tivesse concluído,
três panteras apareceram pulando rumo ele. O ancião cruzou os braços, e
elevando seu olhar para o céu, podia ver-se seus lábios se mexerem como
sussurrando suas orações. As selvagens feras caíram sobre ele enquanto orava de
pe, e em questão de segundos o haviam destroçado.
Seguidamente deixaram entrar
outras feras selvagens. Começaram a pular em volta da arena, tentando pular
contra as barreiras. Em seu furor se trançaram em horrorosa briga umas contra
as outras. Era uma cena espantosa.
Em meio da mesma foi arrojado
um bando de indefesos prisioneiros, empurrados com rudeza. Tratava-se
principalmente de moças, que deste modo eram oferecidas à apaixonada turba
romana sedenta de sangue. Cenas como estas teriam comovido o coração de
qualquer em quem os últimos traços de sentimentos humanos não tivessem sido
anulados. Mas a compaixão não tinha espaço em Roma. Encolhidas e temerosas, as
infelizes criaturas mostravam a humana debilidade natural de enfrentar-se com
morte tão terrível; porém de um momento para outro, algo como que uma faísca
misteriosa de fé as possuía e as fazia superar todo temor. Ao perceber as feras
a presença de suas presas, começaram a aproximar-se. Estas jovens, ajuntando as
mãos, puseram seus olhos nos céus, e elevaram um cântico solene e imponente,
que se levantou com claridade e belíssima doçura para as mansões celestiais:
Ao que nos amou,
Ao que nos lavou de nossos
pecados,
Em seu próprio sangue;
Ao que nos fez reis e
sacerdotes,
Para nosso Deus e Pai,
A Ele seja glória e domínio
Pelos séculos dos séculos,
Aleluia! Amém!
Uma a uma foram silenciadas
as vozes, afogadas com seu próprio sangue, agonia e morte; um a um os clamores
e contorções de angústia se confundiam com exclamações de louvor; e estes belos
espíritos juvenis, tão heróicos ante o sofrimento e fiéis até a morte, levaram
seu canto até uni-lo aos salmos dos remidos nas alturas.
CAPÍTULO 2
O ACAMPAMENTO PRETORIANO
Cornélio, o centurião, varão
justo e temeroso de Deus. [3]
Marcelo tinha nascido em
Gades, e havia sido criado sob a férrea disciplina do exército romano. Tinha
estado em destacamentos na África, na Síria e na Bretanha, e em todas partes
havia-se distinguido, não somente por seu valor no campo de batalha, senão
também por sua sagaz habilidade administrativa razões estas pelas quais
tinha-se feito merecedor de honras e ascensões. Quando chegara a Roma, aonde vinha
trazendo importantes mensagens, tinha agradado o Imperador de forma tal que o
havia destinado para um posto honorário entre os pretorianos.
Lúculo, ao contrário, jamais tinha
saído das fronteiras da Itália, apenas talvez da cidade. Pertencia a uma das
mais antigas e nobres famílias romanas, e era, naturalmente, herdeiro de
abundantes riquezas, com a correspondente influência que a essas acompanha.
Tinha sido atraído pelo ousado e franco caráter de Marcelo, e sendo assim os
dois jovens se converteram em firmes amigos. O conhecimento minucioso que da
capital possuía Lúculo, lhe deparava a facilidade de servir seu amigo; e as
cenas descritas no capítulo precedente foram uma das primeiras visitas que
Marcelo fazia ao renomado Coliseu.
O acampamento pretoriano
estava situado junto à muralha da cidade, à qual estava unido por outra muralha
que o circundava. Os soldados viviam em quartos a modo de com celas perfuradas
na mesma parede. Era um corpo integrado por numerosos homens cuidadosamente
selecionados, e sua posição na capital lhes concedeu tal poder e influência que
por muitas eras mantiveram o controle do governo da capital. Um posto de mando
entre o pretoriano significava um caminho seguro para a fortuna, e Marcelo
reunia todas as condições para que lhe fosse augurado um futuro pletórico de
perspectivas e todas as honras que o favor do Imperador podia depará-lhe.
Na manhã do dia seguinte,
Lúculo ingressou em seu quarto, e depois de ter trocado as saudações usuais e
de confiança, começou a falar a respeito da luta que tinham presenciado.
Marcelo disse:
— Tais cenas não são das que
em verdade me agrado. São atos de crassa covardia. A qualquer pode lhe
comprazer ver dois homens bem treinados travar-se numa luta parelha e limpa;
mas aquelas carnificinas que se vêem no Coliseu são detestáveis. Por que deviam
matar Macer? Ele era um dos mais valentes dos homens, e eu tributo toda a minha
homenagem à sua valentia inimitável. E por que deviam arrojar às feras
selvagens àqueles anciãos e crianças?
— É que esses eram cristãos.
E a lei sagrada é inquebrantável.
— Essa é a resposta de
sempre. Que delito cometeram os cristãos? Eu me encontrei com eles por todas
partes no império, mas jamais os vi entregues nem comprometidos sequer em
perturbações ou coisa semelhante.
— Eles são o pior da
humanidade.
— Essa é a acusação. Mas, que
provas há?
-Provas? Que necessidade
temos de provas, se sabemos até a saciedade o que são e fazem. Conspiram em
segredo contra as leis e a religião de nosso estado. E tanta é a magnitude de
seu ódio contra as instituições que eles preferem morrer antes que oferecer
sacrifício. Não reconhecem rei nem monarca algum na terra, senão àquele judeu
crucificado que eles insistem que vive atualmente. E tanta é sua malevolência
para nós que chegam a afirmar que devemos ser torturados toda a nossa vida
futura nos infernos.
— Tudo isso pode ser verdade.
Disso não entendo nada. Respeito a eles não conheço nada.
— A cidade está atestada
deles; o império foi invadido. E tem presente isto que te digo. A declinação de
nosso amado império que vemos e lamentamos por todas partes, o fato de que se
tenham difundido a debilidade e a insubordinação, a contração de nossas
fronteiras; tudo isso aumenta conforme aumentam os cristãos. A quem mais se devem
todos esses males, senão a eles?
— Como assim eles chegaram a
originar isso tudo?
— Por meio de seus ensinos e
práticas detestáveis. Eles ensinam que o pelejar é mau, que os soldados são os
mais vis dos homens, que nossa gloriosa religião sob a qual prosperamos é uma
maldição, que nossos deuses imortais não são senão demônios malditos. Em suas
práticas privadas eles realizam os mais tenebrosos e imundos dos crimes. Eles
sempre mantêm entre si o mais impenetrável segredo, mas as vezes temos chegado
a escutar seus perniciosos discursos e seus impudicos cantos.
— Em verdade que, de ser isso
assim, é algo sumamente grave e merecem o mais severo castigo. Mas, de acordo
com tua própria declaração, eles mantêm o segredo entre eles, e portanto se
sabe muito pouco deles. Dize-me, aqueles homens que sofreram o martírio ontem,
tinham a aparência de tudo isso? Aquele ancião, tinha algo que demonstrasse que
havia passado sua vida entre cenas de vício? Eram acaso obscenos os cantos que
elevaram essas belíssimas moças enquanto esperavam ser devoradas pelos leões?
Ao que nos amou;
Ao que nos lavou de nossos
pecados com seu sangue...
E Marcelo cantou em voz baixa
e suave as palavras que tinha ouvido.
— Te confesso, amigo,que eu
no fundo de minha alma lamentei a sorte deles.
Ao que Marcelo agregou:
— E eu teria chorado se não
tivesse sido soldado romano. Detém-te um momento e reflexiona. Tu me dizes
coisas a respeito dos cristãos que ao mesmo tempo confessas que somente sabes
de ouvidos, de lábios daqueles que também ignoram o que dizem. Te atreves a
afirmar que são infames e vis, o lixo da terra. Eu pessoalmente os contemplo
quando afrontam a morte, que é a que prova as qualidades mais elevadas da alma.
A enfrentam com nobreza, ao extremo de morrer alegremente. Roma em toda sua
história não pode exibir um único exemplo de cena de maior devoção que a que
presenciamos ontem. Tu dizes que eles detestam os soldados, mas são sobremodo
valorosos; me dizes que eles são impuros, porém, se pode se dizer que existe
pureza em toda a terra, correspondente às belíssimas donzelas que morreram
ontem.
— Te entusiasmas
excessivamente por aqueles párias.
— Não é mero entusiasmo,
Lúculo. Eu desejo saber a verdade. Toda a minha vida tenho ouvido estas
referências. Mas diante do que vi ontem juntamente contigo, pela primeira vez
cheguei a suspeitar de sua veracidade. E agora te pergunto com todo meu
empenho, e descubro que teu conhecimento não se fundamenta em nada. E hoje bem
me lembro que estes cristãos por todo o mundo são pessoas pacificas e honestas
a toda prova. Jamais tomam parte em levantamentos ou perturbações, e estou
convencido que nenhum destes crimes que lhes são imputados poderá ser provado
contra eles. Por que, então, são mortos?
— Porém o Imperador deve ter
boas razões para tê-lo disposto assim.
— Bem pode ele ter sido
instigado por conselheiros ignorantes ou maliciosos.
— Tenho entendido que é uma resolução
tomada por ele mesmo.
— O número dos que foram
entregues à morte dessa forma e pelo mesmo motivo é enorme.
— Ah, sim, são alguns milhares.
Restam ainda muitos mais; mas é que não podem ser capturados. E precisamente
isso me lembra a razão de minha presença aqui. Te trago a comissão imperial.
Lúculo extraiu das dobras de
sua capa militar um rolo de pergaminho, o qual entregou a Marcelo. Este último
examinou com avidez seu conteúdo. Era ascendido a um grau maior, ao mesmo tempo
que ficava comissionado para buscar, perseguir e deter os cristãos onde fosse
que estivessem ocultos, fazendo menção particular das catacumbas.
Marcelo leu preocupado e
depois colocou o rolo de lado.
— Não pareces estar muito
contente.
— Te confesso que a tarefa é
desagradável. Sou um soldado e não gosto disso de andar à caça de velhos débeis
e crianças para os carrascos. Porém, como soldado, devo obedecer. Fala-me algo
acerca das catacumbas.
— As catacumbas? É um
distrito subterrâneo que existe embaixo da cidade, e cujos limites ninguém
conhece. Os cristãos fogem às catacumbas cada vez que se encontram em perigo;
também estão já habituados a enterrar seus mortos ali. Uma vez que conseguem
penetrar ali, podem-se considerar fora do alcance dos poderes do estado.
— Quem fez as catacumbas?
— Ninguém sabe com exatidão.
O fato é que estiveram ali durante muitos séculos. Eu acredito que foram
escavadas com o objeto de extrair areia para edificações. Pois na atualidade
todo o nosso cimento provém dali, e poderás ver inumeráveis operários trazendo
cimento à cidade por todos os caminhos. Na atualidade têm que ir até uma grande
distância, porque com o transcurso dos anos foi escavado tanto sob a cidade que
a deixaram sem fundamento.
— Existe alguma entrada
regular?
— Existem inúmeras entradas.
Precisamente essa é a dificuldade. Pois se existisse somente umas poucas, então
poderíamos capturar os fugitivos. Porém, assim não podemos distinguir desde que
direção devemos avançar sobre eles.
— Há algum distrito do qual
se suspeita?
— Sim. Seguindo pela Via
Ápia, umas duas milhas para a frente, perto do túmulo de Cecília Metella, a
grande torre redonda que conheces, ali foram achados muitos cadáveres. Fazem-se
conjecturas de que se trata dos corpos dos cristãos que foram resgatados do
anfiteatro e levados para lá para dar-lhes sepultura. Ao se aproximarem os
guardas os cristãos deixaram os cadáveres e fugiram. Mas, depois de tudo, isso
não ajuda de muito, porque depois que alguém penetra nas catacumbas, não pode
considerar que esteja mais perto do objetivo que antes. Não existe ser humano
que possa penetrar naquele labirinto sem o auxílio daqueles que moram ali
mesmo.
— Em mora ali?
— Os escavadores, que ainda
se dedicam a cavar a terra em busca de areia para as construções. Quase todos
eles são cristãos, e sempre estão ocupados em escavar tumbas para os cristãos
que morrem. Esses homens viveram ali sua vida toda, e não somente pode se dizer
que estão familiarizados com todas aquelas passagens, senão que têm uma espécie
de intuito que os conduz.
— Entraste algumas vezes nas
catacumbas, verdade?
— Uma vez, faz muito tempo,
quando um escavador me acompanhou. Mas só permaneci ali um curto tempo. Deu-me
a impressão de ser o lugar mais terrível que existe no mundo.
— Eu tenho ouvido falar das
catacumbas, mas em realidade não sabia nada a respeito delas. É estranho que
sejam tão pouco conhecidas. Não poderiam esses escavadores comprometer-se a guiar
os guardas por todos esses labirintos?
— Não, eles não entregariam
os cristãos.
— Mas, tentaram fazê-lo?
— Oh, sim. Alguns obedecem e
guiam os oficiais da justiça através da rede de passagens, até que chega um
momento em que quase perdem o sentido. As tochas quase extinguem, chegando eles
a aterrorizar-se. E então pedem para voltar. O escavador expressa que os
cristãos devem ter fugido, e assim volta o oficial ao ponto de partida.
— E ninguém tem a suficiente
resolução de seguir até chegar a encontrar os cristãos?
— Se insistem em continuar a
busca, os escavadores os conduzem até onde desejem. Mas o fazem pelas
incontáveis passagens que interceptam alguns distritos particulares.
— E não foi achado nem um só
que entregue os fugitivos?
— Sim, algumas vezes. Mas, de
que serve? Ao primeiro sinal de alarme todos os cristãos desaparecem pelos
condutos laterais que se abrem por toda parte.
— Minhas perspectivas de
êxito parecem muito poucas.
— Poderão ser poucas, porém
muita esperança está cifrada em tua ousadia e sagacidade. Pois se chegas a ter
êxito nesta empresa que te é comissionada, terás assegurado a tua fortuna. E
agora, boa sorte! Disse-te tudo o que sei. Não terás dificuldades em aprender
muito mais de qualquer dos escavadores.
Assim falava Lúculo, enquanto
ia embora. Marcelo escondeu o rosto entre as mãos, e sumiu-se em profundos
pensamentos. Porém, na metade de sua meditação o perseguia, como envolvendo-o,
as primeiras frases, cada vez mais penetrantes, daquela gloriosa melodia que
evidenciava o triunfo sobre a morte: "Ao que nos amou. Ao que nos lavou de
nossos pecados".
CAPÍTULO 3
A VIA ÁPIA
Sepulcros em demonstração de
melancolia, guardam dos poderosos as cinzas que dormem na Via Ápia.
Marcelo entregou-se de cheio
e sem perder um momento a cumprir a comissão para a qual tinha sido destinado.
No dia seguinte dedicou-se à investigação. Como se tratava de uma correria de
mera indagação, não se fez acompanhar de soldado algum. Partindo do quartel dos
pretorianos, tomou a Via Ápia rumo ao exterior da cidade.
Uma sucessão de túmulos
alinhava-se a ambos lados desta famosa via, cuja magnífica conservação estava a
cargo das cuidadosas famílias a quem pertencia. A certa distância do caminho
ficavam as casas e as vilas, tão igualmente apinhadas como no centro da cidade.
Muita distância ficava ainda por recorrer para chegar a campo aberto.
Finalmente chegou o
caminhante à enorme torre redonda, a qual se levanta a umas duas milhas da
porta. Construída de enormes blocos de pedra, tinha sido ornamentada com a mais
imponente beleza e simplicidade ao mesmo tempo. O estilo austero de tão sólida
construção lhe imprimia um ar de firme desafio contra os embates do tempo.
A esta altura Marcelo se
deteve para contemplar o que havia percorrido. Roma tinha a virtude de oferecer
uma vista nova e a qual mais interessante àquele observador que recém a
conhecia. O mais notório aqui era a interminável fileira de túmulos. Até este
ponto de repouso inevitável tinham chegado em sua marcha triunfal as grandes,
os nobres e os valentes dos tempos passados, cujos epitáfios competiam em fazer
públicas suas honras terrenas, em contraste com a incerteza de suas
perspectivas no ignoto de uma vida, por ventura, sem fim. As artes ao serviço
da riqueza haviam erigido estes pomposos monumentos, e o efeito piedoso dos
séculos os tinha preservado até o momento. Precisamente frente a ele tinha o
mausoléu sublime de Cecília Metella. Mais além estavam os túmulos de Catalino e
os Servili. Ainda mais longe seu olhar encontrou o lugar de repouso de Escipião,
cuja clássica arquitetura classificava seu conteúdo com "o pó de seus
heróicos moradores".
À sua mente acudiram as
palavras de Cícero: "Quando sais pela Porta Capena, e vedes as tumbas
de Catalino, dos Escipiões, dos Servili, vos atreveis a pensar que os que ali
sepultados repousam são infelizes?"
Ali estava o Arco de Druso,
limitando o largo da via. Num dos lados estava a gruta histórica de Egéria, e a
curta distância, o lugar escolhido uma vez por Aníbal para lançar sua javalina
contra as muralhas de Roma. As intermináveis fileiras de tumbas seguiam até que
na distância terminavam na monumental pirâmide de Gaio Cestio, oferecendo todo
este conjunto o maior cenário de magnificência sepulcral que podia ser achado
em toda a terra.
Por todos os lados a terra
estava coberta das moradas do homem, porque fazia longo tempo que a cidade
imperial tinha excedido seus limites originais, e as casas tinham se espalhado
por todos os lados no campo que a circundava, até o extremo que o viajante
apenas podia distinguir onde terminava o campo e onde começava a cidade.
Desde a distância parecia
saudar o ouvido o barulho da cidade, o rolar dos numerosos carros, o recorrer
de multidões de pés pressurosos. Diante dele se levantavam os monumentos, o
branquíssimo brilho do palácio imperial, as inumeráveis cúpulas e colunas
formando torres elevadas, como uma cidade no ar, por encima de todo o excelso
Monte Capitolino, em cujo cume se eleva o templo de Júpiter.
Porém, tanto mais
impressionante que o esplendor do lar dos vivos era a solenidade da cidade dos
mortos.
Que desperdiço de glória
arquitetônica se espalhava em volta dele! Ali se elevavam orgulhosos os
monumentos das grande famílias de Roma. O heroísmo, o gênio, o valor, o
orgulho, a riqueza, tudo aquilo que o homem estima ou admira, animavam aqui as
eloqüentes pedras e despertavam a emoção. Aqui estavam as formas visíveis das
mais altas influências da antiga religião pagã. Porém, seus efeitos sobre a alm
nunca corresponderam com o esplendor de suas formas externas ou a pompa de seus
ritos. Os epitáfios dos mortos não evidenciavam nem um ápice de fé, senão amor
à vida e seus triunfos; nada de segurança de uma vida imortal, mas um triste
desejo egoísta dos prazeres deste mundo.
Tais eram os pensamentos de Marcelo, enquanto
meditava sobre o cenário que tinha diante dele, repetindo-se insistentemente a
lembrança das palavras de Cícero: "Os atreveis a pensar que o que ali
sepultados repousam são infelizes?"
Continuou pensando agora:
"Estes cristãos, em cuja busca estou, parecem ter aprendido mais do que eu
posso descobrir em nossa filosofia. Eles parecem nosso somente ter conquistado
o temor da morte, senão que aprenderam a morrer gozosos. Que poder segredo têm
eles que chega a inspirar ainda os mais jovens e os mais fracos deles? Qual o
significado oculto de seus cânticos? Minha religião pode somente ter esperança
de que talvez não serei infeliz; porém, a deles os leva a morrer com cantos de
triunfo, de regozijo".
Mas, o que ia fazer para
poder continuar com sua busca dos cristãos? Multidão de pessoas passavam junto
dele, mas ele não podia descobrir um só capaz de ajudá-lo. Edifícios de
variados tamanhos, muralhas, túmulos e templos o rodeavam por todas partes, mas
ele não via lugar algum que pudesse conduzi-lo às catacumbas. Estava
completamente perdido e sem saber o que fazer.
Entrou numa rua caminhando
lentamente, tentando fazer um escrutínio cuidadoso de cada pessoa que achava, e
examinando minuciosamente cada edifício. Contudo, não obteve o menor resultado,
salvo o ter descoberto que a aparência externa de quanto o rodeava não mostrava
sinais que a relacionassem com moradas subterrâneas. O dia se passou, e começou
a ficar tarde; mas Marcelo lembrou que tinham lê falado que havia muitas
entradas às catacumbas, e foi assim que continuou sua busca, esperando achar um
itinerário antes do fim do dia.
No final, sua busca foi
recompensada. Tinha caminhado em todas direções, às vezes recorrendo suas
próprias pegadas e voltando de novo ao mesmo ponto de partida para
re-orientar-se. As sombras crepusculares se aproximavam e o sol chegava ao
ocaso. Nessas circunstâncias, seu olho alerta foi atraído para um homem que na
direção oposta caminhava seguido de uma criança. a vestimenta do homem era de
confecção rústica, e além disso, suja de areia, barro e argila. Seu aspecto
enxuto e pálido rosto evidenciavam que era alguém que tinha estado longo tempo
em prisões, e assim toda sua aparência externa atraiu o atento olhar do jovem
soldado.
Aproximou-se daquele homem, e
não sem antes colocar a mão sobre seu ombro, lhe disse:
— Você é escavador. Venha
comigo.
Ao alçar o homem o olhar, deu
com um rosto severo. E a presença das roupas de oficial o atemorizaram. No
instante desapareceu, e antes que Marcelo pudesse dar o primeiro passo em sua
perseguição, tinha tomado um encaminhamento lateral e tinha-se perdido de
vista.
Mas Marcelo pegou o rapaz.
— Vem comigo — disse.
A pobre criança não pôde
fazer senão fitá-lo, mas com tal agonia e medo que Marcelo ficou comovido.
— Tenha misericórdia de mim,
o peço pela minha mãe. Se você me detém, ela morrerá.
A criança se lançou aos seus
pés, balbuciando somente aquilo em forma entrecortada.
— Não vou te fazer nenhum
dano, vem comigo — e assim o conduziu para um espaço aberto afastado do lugar
por onde tanta gente estava circulando— . E agora que estamos sós, — disse-lhe,
detendo-se e fitando-o— , me diz a verdade. Quem é você?
— Me chamo Pólio — disse o
menino.
— Onde você mora?
— Em Roma.
— E o que estás fazendo aqui?
— Saí para cumprir um encargo.
— Quem era aquele homem?
— Um cavador.
— O que estavas fazendo com
ele?
— Ele estava me levando um
pacote.
— O que continha o pacote?
— Provisões.
— A quem as levavas?
— A uma pessoa necessitada
por lá.
— Onde mora essa pessoa?
— Aqui perto, perto.
— Ora, rapaz, fala a verdade.
Você conhece algo das catacumbas?
— Tenho ouvido falar delas.
Os escavadores vivem ali.
— Nunca esteve dentro delas?
— Sim, já estive algumas
vezes.
— Conhece alguém que more lá?
— Sim, algumas pessoas. Os
escavadores moram ali.
— Você ia às catacumbas com
ele?
— O que vou fazer ali nesta
hora? — disse o garoto, inocentemente.
— Isso precisamente é o que
eu desejo saber. Ia para lá?
— Como poderia atrever-me a
ir para lá, quando está proibido pela lei?
Marcelo disse abruptamente:
— Já é noite. Vamos ao
serviço noturno daquele templo.
O menor vacilou e depois
disse:
— Estou com pressa.
— Mas neste momento você é
meu prisioneiro. Eu nunca deixo de ir adorar meus deuses. Você tem de vir agora
comigo e me ajudar em meus serviços devocionais.
Ao que a criança respondeu
firmemente:
— Eu não posso.
— Por que não podes?
— Porque sou cristão.
— Eu já sabia. E você tem
amigos nas catacumbas, e vá para lá agora. Eles são as pessoas necessitadas a
quem está levando essas provisões, e o mandado que diz é para benefício deles.
O rapaz inclinou a cabeça e
guardou silêncio.
— Quero que me conduzas agora
mesmo à entrada das catacumbas.
— Oh, vejo que você é um
oficial generoso, tenha misericórdia de mim! Não me peça semelhante coisa,
porque não posso fazê-lo. jamais vou trair meus amigos.
— Você não vai traí-los. Não
significa nada que me mostres uma entrada entre as muitas que conduzem lá
embaixo. Acreditas que os guardas não as conhecem a todas?
O rapaz refletiu por um
momento, e finalmente manifestou seu assentimento.
Marcelo o tomou pela mão e se
entregou para que o conduzisse. Ele voltou à direita da Via Ápia, e depois de
recorrer uma curta distância, chegou a uma casa desabitada. Entrou nela e
desceu ao porão. Ali havia uma porta que aparentemente dava a um simples depósito.
O rapaz indicou esse lugar e se deteve.
— Eu desejo descer lá — disse
Marcelo firmemente.
— Tem certeza que você não se
atreveria a descer lá sozinho?
— Dizem que os cristãos não
cometem delitos. O que deveria eu temer? Continuemos.
— Eu não tenho tochas.
— Mas eu tenho. Eu vim
preparado. Vamos.
— Eu não posso continuar
mais.
— Você se nega?
O rapaz respondeu:
— Devo negar-me. Meus amigos,
meus parentes estão lá embaixo. Antes de conduzir você lá onde eles estão eu
morreria cem vezes.
— Você é muito ousado. Mas
não sabe o que é a morte.
— Que eu não sei? Que cristão
há que tema ir à morte? Já vi muitos de meus amigos morrer em agonia, e ainda
ajudei a sepultá-los. Eu no vou conduzi-lo lá. Me leve à prisão.
A criança deu meia volta.
— Mas se eu te levar, o que
pensarão teus amigos? Você tem mãe?
O menino inclinou a cabeça e
começou a chorar amargamente. A menção daquele nome querido o havia vencido.
— Já vejo que tem mãe e que a
ama. Me leva embaixo e voltarás vê-la.
— Eu jamais os trairei, já
falei. Antes morrerei. Faça comigo o que você desejar.
— Se eu tivesse más
intenções, acha que desceria sem me fazer acompanhar por soldados? — disse
Marcelo.
— Mas, o que pode querer um
soldado, ou um pretoriano, com os perseguidos cristãos, senão destruí-los?
— Moleque, eu não tenho más
intenções. Se você me conduz lá embaixo te juro que não farei nada contra teus
amigos. Quando eu esteja lá, eu serei um prisioneiro, e eles podem fazer comigo
o que desejem.
— Você me jura que não vai
traí-los?
— Eu juro pela vida de César,
e pelos deuses imortais — disse Marcelo solenemente.
— Vamos, então — disse a
criança— . Não precisamos tochas. Me siga cuidadosamente.
E o menor penetrou pela
estreitíssima abertura.
CAPÍTULO 4
AS CATACUMBAS
Nada de luz, mas só trevas
Que descobriam quadros de
angústia,
Regiões de dor, funestas
sombras.
Seguiram na densa escuridão, até
que no fim a passagem se tornou mais larga e chegaram a uns degraus que
conduziam para abaixo. Marcelo, colhido das roupas do menino, o seguia.
Era certamente uma situação
que provocava alarme. Pois estava se entregando nas mãos daqueles homens, a
quem precisamente a classe a qual ele pertencia os havia privado do ar livre,
afundando-os naquelas tétricas moradas. Para eles Marcelo não podia ser
reconhecido de outro modo senão como perseguidor. Mas a impressão que nele
havia deixado a gentileza e humildade deles era tal que não tinha o menor temor
de sofrer dano algum. Estava simplesmente em mãos deste rapaz que bem poderia
conduzi-lo à morte nas densas trevas deste impenetrável labirinto, mas nem
sequer pensava nisso. Era o desejo fervente de conhecer mais desses cristãos,
lograr seu segredo, o que o conduzia a seguir adiante; e conforme tinha jurado,
assim havia resolvido que essa visita não seria utilizada para traí-los ou
feri-los.
Depois de descer por algum
tempo, estavam caminhando por terreno a nível. De repente voltaram e entraram
numa pequena câmara com abobadada, que estava alumiada pela débil
fosforescência de um fogo. A criança havia caminhado com passo firme sem a
menor vacilação, como quem está perfeitamente familiarizado com o caminho. Ao
chegar àquela câmara, acendeu a tocha que estava no chão, e recomeçou sua
marcha.
Existe sempre alguma coisa de
inexplicável no ar de um campo santo, que não é possível comparar com o de
nenhum outro lugar. Prescindindo o fato da reclusão, a umidade, o mortal cheiro
da terra, há uma certa influência sutil que envolve tais âmbitos com tanta
intensidade que os faz tanto mais aterradores. Ali aflora o hálito dos mortos,
que pousa tanto na alma como no corpo. Eis ali a atmosfera das catacumbas. O
frio e a umidade atacavam o visitante , quais ares estremecidos do reino da
morte. Os vivos experimentam o poder misterioso da morte.
Pólio caminhava na frente,
seguido de Marcelo. A tocha iluminava apenas as densas trevas. Os reflexos da
luz do dia, nem ainda o mais fraco raio, jamais poderiam penetrar aqui para
aliviar a deprimente densidade dessas trevas. A escuridão era tal que podia se
sentir. A luz da tocha deu lume só uns poucos passos, mas não demorou em
extinguir-se em tantas trevas.
A senda seguia tortuosamente
fazendo giros incontáveis. Repentinamente Pólio se deteve e indicou embaixo.
Olhando entre a escuridão, Marcelo viu uma abertura na senda que conduzia ainda
mais abaixo de onde já estavam. Era uma fossa sem fundo visível.
— Aonde conduz?
— Abaixo.
— Existem mais corredores lá
embaixo?
— Oh, sim. Há tantos como
aqui; e ainda embaixo da seguinte seção há outros. Eu só estive em andares
diferentes destas sendas, mas alguns velhos escavadores dizem que há alguns
lugares onde se pode descer a uma profundidade enorme.
O corredor serpenteava de tal
modo que toda idéia de localização se perdia por completo. Marcelo já não podia
precisar se estava a uns quantos passos da entrada ou a muitos estádios. Seus
perplexos pensamentos demoraram em voltar-se para as coisas. Ao passar a
primeira impressão das densas trevas, dedicou-se a olhar mais atentamente ao
que se lhe apresentava à vista, cada vez mais maravilhado do estranho recinto.
Ao longo das muralhas havia pranchas semelhantes a lápides que pareciam cobrir
longas e estreitas escavações. Estes nichos celulares alinhavam-se a ambos
lados tão estreitamente que apenas sobrava espaço entre um e outro. As
inscrições que se viam nas pranchas evidenciavam que eram tumbas de cristãos.
Não teve tempo de deter-se para ler, mas havia uma nota de repetição da mesma
expressão, tal como:
HONÓRIA – ELA DORME EM PAZ
FAUSTA – EM PAZ
Em quase todas as tábuas viu
ele a mesma doce e benigna palavra. "PAZ", pensava Marcelo. "Que
gente mais maravilhosa são estes cristãos, que ainda em meio de cenários como
este abrigam seu sublime desdém pela morte".
Seus olhos habituavam-se cada
vez melhor às trevas conforme avançava. Agora o corredor começava a estreitar-se;
o teto se inclinava e os lados se aproximavam; eles deviam encolher-se e
caminhar mais devagar. As muralhas eram toscas e rudemente cortadas conforme as
deixavam os trabalhadores quando extraiam daqui sua última carga de areia para
os edifícios do exterior. A umidade subterrânea e os fungos estavam por todas
partes, agravando toda sua tétrica cor, saturando o ar de pesada umidade,
enquanto a fumaça das tochas fazia a atmosfera tanto mais depressiva.
Passaram centenas de
corredores e dezenas de lugares em que se encontravam numerosas sendas, que se
separavam em diferentes direções. Estas inumeráveis sendas demonstravam a
Marcelo até que ponto estava fora de toda esperança, cortado do mundo exterior.
Esta criança o tinha em suas mãos.
— Costumam se perder algumas
pessoas aqui?
— Com grande freqüência.
— Que acontece com eles?
— Algumas vezes vagueiam até
que encontram algum amigo; outras vezes nunca mais se sabe nada deles. Mas na
atualidade a maioria de nós conhecemos o lugar tão bem, que se nos perdêssemos,
não demoraríamos em chegar de novo, tateando, a alguma senda conhecida.
Uma coisa em particular
impressionou maiormente o jovem oficial, e era a imensa preponderância de
tumbas pequenas. Pólio explicou que essas pertenciam a crianças. Isso despertou
nele sentimentos e emoções que não tinha experimentado antes.
"Crianças!",
pensava, "O que fazem com eles? Os jovens, os puros, os inocentes? Por que
não foram sepultados acima, onde os raios benfeitores do sol os abrigariam e as
flores enfeitariam seus túmulos? Acaso eles recorreram trilhas tão tenebrosas
como estas em seus curtos dias de vida? Acaso eles partilharam sua sorte com
aqueles que recorreram a estes tétricos esconderijos em sua fuga da
perseguição? Talvez o ar mortífero de interminável tristeza destas pavorosas
moradas diminuiu suas preciosas vidas infantis, e tirou a vida de seus
imaculados espíritos antes de seu tempo de maturidade?"
Marcelo, como em um suspiro,
perguntou:
— Muito tempo faz que estamos
nesta marcha, estamos já para chegar?
O menino respondeu:
— Muito pronto chegaremos.
Sejam quais fossem as idéias
que Marcelo abrigava antes de chegar até lá quanto a caça destes fugitivos,
agora estava convencido de que todo intento de fazê-lo era absolutamente em
vão. Todo um exército de soldados podia penetrar aqui e jamais chegar nem
sequer a ver um único cristão. E quanto mais se afastasse tanto mais
desesperançada seria a jornada. Eles poderiam disseminar-se por esses
inumeráveis corredores e vaguear por ali até encontrar a morte.
Porém agora um som quase
imperceptível, como a grande distância, atraiu sua atenção. Doce e de uma
candura indescritível, baixíssimo e musical, vinha procedente dos longos
corredores, chegando a encanta-lhe como se fosse uma voz das régios celestiais.
Continuaram sua lenta marcha,
até que uma luz brilhou diante deles, ferindo as densas trevas com seus raios.
Os sons aumentavam, elevando-se de pronto num coro de magnificência
imponderável, para depois diminuir e minguar até converter-se em lamentos de
penitentes súplicas.
Em poucos minutos chegaram a
um lugar onde tiveram que voltear em sua marcha, desembocando diante dum
cenário que bruscamente apareceu perante seus olhos.
— Alto! — exclamou Pólio, ao
mesmo tempo que detinha a seu companheiro e apagava a luz da tocha que os havia
guiado até ali. Marcelo obedeceu, e olhou com profunda avidez o espetáculo que
se oferecia a sua visão. Estavam numa câmara abobadada como de uns cinco metros
de alto e dez de largo. E em tão reduzido espaço se albergavam umas cem
pessoas, homens, mulheres e crianças. A um lado havia uma mesa, detrás da qual
estava em pe um ancião venerável, quem parecia ser o dirigente deles. O lugar
estava iluminado pelo reflexo de algumas tochas que lançavam apagada luz
avermelhada sobre a assembléia toda. Os presentes apareciam carregados de
inquietude e consumidos, observando-se em seus rostos a mesma característica
palidez que tinha visto no escavador. Ah, mas a expressão que agora via neles
não era em absoluto de tristeza, nem de miséria nem de desesperação! Mas bem
uma atraente esperança iluminava seus olhos, e em seus rostos se desenhava um
gozo vitorioso e triunfal. A alma deste observador foi comovida até o íntimo,
porque não era senão a confirmação anelada inconscientemente de tudo quanto
havia admirado nos cristãos: seu heroísmo, sua esperança, sua paz, que se
fundamentavam necessariamente em algo, escondido, oculto, distante para ele! E
enquanto permanecia estático e silencioso, escutou o canto entoado com a alma
por essa consagração:
Grandes e maravilhosas são
tuas obras,
Senhor Deus Todo Poderoso.
Justos e verdadeiros são teus
caminhos.
Tu, oh Rei dos santos,
Quem não te temerá, oh Deus,
e glorificará Teu sagrado
nome?
Porque só Tu és santo.
Porque todas as nações virão
E adorarão diante de Ti,
Porque teus juízos se
manifestaram. [4]
A isto seguiu uma pausa. O
dirigente leu algo num rolo que até esse momento era desconhecido para Marcelo.
Era a asseveração mais sublime da imortalidade da alma, e da vida depois da
morte. A consagração toda parecia pendente do majestoso poder destas palavras,
que parecia transmitir hálitos de vida. Finalmente o leitor chegou a prorromper
numa exclamação de gozo, que arrancou clamores de gratidão e a mais
entusiástica esperança de parte de toda a consagração. As palavras penetraram
no coração do observador recém chegado, embora ele ainda não compreendesse a
plenitude de seu significado: "Onde está, oh morte, teu aguilhão? Onde, oh
sepulcro, tua vitória? Já que o aguilhão da morte é o pecado, e a potência do
pecado, a lei. Mas graças a Deus, que nos dá a vitória pelo nosso Senhor Jesus
Cristo".
Estas palavras pareceram
descobrir um novo mundo perante sua mente, com novíssimos pensamentos. O
pecado, a morte, Cristo, com toda aquela infinita seqüela de idéias relacionadas,
apareciam debilmente perceptíveis para sua alma que, mas que despertar, parecia
ressuscitar! Agora mais que nunca ardia nele um anelo vivo por chegar a
conhecer o segredo dos cristãos, anseio que até satisfazer, não pararia!
O que dirigia levantou a cabeça
reverente, estendeu os braços e falou fervorosamente com Deus. Dirigia-se ao
Deus invisível como vendo-o, expressava sua confissão e indignidade, e
expressava o agradecimento pelo lavamento dos pecados, graças ao sangue
expiatório de Jesus Cristo. Pedia que o espíritos desde o alto descesse a
operar dentro deles para que os santificasse. Depois enumerou suas agonias, e
pediu que fossem liberados, solicitando a graça da fé em vida, a vitória na
morte, e a abundante entrada nos céus em nome do Redentor, Jesus.
A continuação seguiu-se outro
cântico que foi entoado como o anterior:
Eis aqui o tabernáculo de
Deus com os homens,
E Ele morará com eles,
E eles serão Seu povo,
E o próprio Deus será com
eles
E será seu Deus.
E Deus enxugará toda lágrima
de seus olhos,
E não haverá mais morte, nem
tristeza,
Nem gemidos, e também não
haverá mais dor,
Porque as coisas velhas se
passaram. Amém.
Bênção, glória e sabedoria,
E ações de graças, e honra, e
poder e magnificência,
Sejam ao nosso Deus
Pelos séculos dos séculos,
amém.[5]
E depois disto a consagração
começou a dispersar-se. Pólio avançou até a frente, conduzindo Marcelo. Porém,
perante sua figura marcial e sua reluzente armadura todos retrocederam e
tentaram fugir pelas diferentes sendas. Então Marcelo clamou em alta voz:
— Não temais, cristãos! Eu me
rendo perante vocês, estou em seu poder!
Com isto, todos voltaram, e
depois o fitaram com ansiosa curiosidade. O ancião que havia dirigido a reunião
avançou até ele e lhe dirigiu um olhar firme e esquadrinhador.
— Quem é você, e por que nos
persegue ainda até o último esconderijo de repouso que se nos permite na terra?
— Tenham a bem não suspeitar
o menor mal de minha parte. Eu vim sozinho, sem escolta nem ajuda. Estou a
mercê de vocês.
— Mas, por ventura, o que
pode desejar de nós um soldado, e ainda mais, um pretoriano? Está por caso
sendo perseguido? É talvez um criminal? Sua vida está em perigo?
— De forma alguma. Eu sou
oficial de alta graduação e autoridade, e acontece que a minha vida toda andei
ansiosamente procurando a verdade. E tenho ouvido muito a respeito de vocês os
cristãos; porém, nesta época de perseguição é difícil achar um só de vocês em
Roma. E é por isso que vim até aqui em sua busca.
Ante isto, o ancião pediu a
assembléia que se retirasse, a fim de que pudessem conversar com o recém
chegado. Os outros obedeceram instantaneamente, e se afastaram por diferentes
corredores, sentindo-se mais tranqüilos. Uma mulher pálida se adiantou a Pólio
e o tomou em seus braços.
— Quanto demoraste, filho
meu!
— Mãe querida, me encontrei
com este oficial e fui obrigado a me deter.
— Graças sejam a Deus nosso
Senhor que estás bem. Mas, quem é ele?
Ao que o rapaz respondeu
dizendo confiadamente:
— Eu acredito que ele é um
homem honesto. Já vês como confia em nós.
O dirigente interveio
dizendo:
— Cecília, não vai embora,
fica um momento.
A mulher permaneceu, sendo
imitada por algumas outras pessoas.
— Eu me coloco às suas
ordens, sou Honório — disse o ancião, dirigindo-se a Marcelo— . Sou um humilde
ancião na Igreja de Jesus Cristo. Eu acredito que você é sincero e de boa fé.
Me diga pois agora, o que quer de nós.
— De minha parte, eu que me
coloco às tuas ordens. Meu nome é Marcelo, e sou capitão da guarda pretoriana.
— Aí de mim! — exclamou
Honório, juntando as mãos ao mesmo tempo em que caia sentado sobre seu banco.
Os outros olharam para Marcelo contritos, e a mulher, Cecília, clamou
agonizante de dor.
— Oh, Pólio querido! Como nos
traíste!
CAPÍTULO 5
O SEGREDO DOS CRISTÃOS
O mistério da piedade, Deus
manifestado em carne.[6]
O jovem oficial permaneceu
atônito ao perceber o efeito que seu nome tinha produzido. E, reagindo, disse:
— Por que todos tremem desse
modo? É por ventura por minha causa?
Honório respondeu:
— Ai de mim. Embora
proscritos nestes lugares, temos constante comunicação com a cidade. Sabemos
que novos reforços serão feitos para perseguir-nos com maior severidade e que
Marcelo, o capitão dos pretorianos, foi designado para buscar-nos. E neste
momento vemos em nossa presença o nosso principal inimigo. Não é esta
suficiente causa para que tremamos? Por que haveria você de perseguir-nos até
este lugar?
Marcelo exclamou:
— Não têm motivos para
temer-me, ainda no caso de que eu fosse seu pior inimigo. Não estou acaso em
suas mãos? Se desejassem deter-me, poderia eu escapar? Se quisessem matar-me,
poderia eu resistir? Estou simplesmente entre vocês tal como me vêem, sem
nenhuma defesa. O fato de encontrar-me aqui sozinho é prova de que não existe
perigo de parte minha.
Honório, reassumindo seu ar
de calma, disse:
— Verdadeiramente, tem razão;
você de forma nenhuma poderia regressar sem a nossa ajuda.
— Ouçam, pois, que eu
explicarei tudo. Eu sou soldado romano. Nasci na Espanha e fui criado na
virtude e na moralidade. Fui ensinado a temer os deuses e cumprir com meu
dever. Tenho estado em muitas terras e me dediquei por inteiro a minha
profissão. No entanto, nunca descuidei minha religião. Em minhas habitações
estudei todos os escritos dos filósofos da Grécia e da Roma. Como resultado
disto aprendo a desdenhar nossos deuses e deusas, os que não são melhores, e
mais bem são piores, do que eu próprio. Platão e Cícero me ensinaram que existe
uma Deidade suprema à qual ´que meu dever obedecer. Mas, como posso conhecê-la
e como devo obedecê-la? Também aprendi que eu sou imortal, e que quando morrer
hei de converter-me em espírito. Como serei então? Serei feliz ou miserável?
Como posso eu me assegurar a felicidade na vida espiritual? Eles descrevem com
prodigalidade de eloqüência as glórias da vida imortal, mas não dão instruções
para os homens comuns como eu. E o chegar a saber tudo isto é o que constitui o
anelo vivo de minha alma.
— Os sacerdotes são incapazes
de dizer nada. Eles estão enlaçados com antigos formalismos e cerimônias nas
quais eles mesmos nunca acreditaram. A antiga religião está morta; são os
homens os que a mantêm em pé.
— Nos diferentes lugares por
onde andei, tenho ouvido falar muito sobre os cristãos. Mas encerrado, como
sempre estive em meu quartel, jamais tive a feliz oportunidade de conhecê-los,.
E para ser franco, não tinha me interessado em conhecê-los até estes últimos
dias. Tenho ouvido informes comuns de sua imoralidade, seus vícios segredos,
suas pérfidas doutrinas. E naturalmente até pouco tempo atrás eu acreditava
nisso tudo. Faz alguns dias estive no Coliseu. Somente ali aprendi algo a
respeito dos cristãos. Eu contemplei o gladiador Macer, um varão para quem o
temor era desconhecido, e ele preferiu ser morto antes de fazer o que ele
acreditava era mau. Vi um venerável ancião enfrentar a morte com um pacífico
sorriso em seus lábios; vi um grupo de moças que entregaram suas vidas às feras
selvagens com um cântico de triunfo:
Ao que nos amou,
Ao que nos lavou de nossos
pecados…
O que Marcelo expressou
produziu um efeito maravilhoso. Os olhos dos que o ouviram resplandeciam de
gozo e veemência. Quando ele mencionou Macer, se entreolharam com gestos
significativos. Quando ele falou do ancião, Honório inclinou a cabeça. E quando
falou das crianças e das jovens, e sussurrou as palavras do hino, todos
voltaram o rosto e choraram.
— Foi aquela a primeira vez
em minha vida em que vi a morte derrotada. Naturalmente eu posso afrontar a
morte sem temor, como também cada soldado no campo de batalha. Porém, essa é a
nossa profissão. Mas estas pessoas se compraziam e regozijavam em morrer. Aqui
não se trata de soldados, senão de crianças, que estavam imbuídos dos mesmos
sentimentos em seus corações.
— Desde então não tenho
conseguido pensar absolutamente em nenhuma outra coisa. Quem é esse que os
amou? Quem é o que os lavou de seus pecados com seu sangue? Quem é o que dá
esse valor sublime e essa esperança viva?
— Eu efetivamente fui
comissionado para conduzir os soldados contra vocês para destruí-los. Mas
primeiramente desejo saber mais a respeito de vocês. Eu juro pelo Ser supremo
que esta minha visita não ocasionará dano nenhum. Digam-me, pois, o segredo dos
cristãos.
Honório respondeu:
— Tuas palavras são sinceras
e verdadeiras. Agora já sei que você não é um espião ou inimigo, senão mais bem
uma alma inquisitiva que foi enviada aqui pelo mesmo Espírito Santo para que
conheças aquilo que faz tempo está procurando. Regozija-te, pois, porque todo
aquele que vem a Cristo de nenhuma forma será rejeitado.
— Tenho visto homens e
mulheres que deixaram amigos, lares, honras e riquezas para viver aqui em
necessidade, temor, dor; e tudo o tiveram por perda por causa de Jesus Cristo.
Nem ainda suas próprias vidas apreciam. Os cristãos o deixam tudo por Aquele
que os amou.
— Você tem toda a razão,
Marcelo, ao pensar que há um grande poder que pode fazer tudo isto. Não é o
mero fanatismo, não é ilusão, nem muito menos emoção. É o conhecimento da
verdade e o amor ao Deus vivo.
"O que você andou
procurando por toda sua vida é para nós nossa mais amada possessão. Entesourado
em nossos corações, é para nós mais digno, sem ponto de comparação sequer com
qualquer coisa que este mundo possa oferecer. Nos outorga a felicidade na vida
ainda neste tenebroso lugar, e nos dá a vitória frente a própria morte.
"Você anseia conhecer o
Ser supremo; pois a nossa fé (o cristianismo) é a revelação dEle. E por meio
dessa revelação, Ele faz que O conheçamos. Conforme é infinito em grandeza e
poder, também o é em amor e misericórdia. Esta fé nos achega tão estreitamente
a Ele que chega a ser nosso melhor amigo, nosso guia, nosso consolo, nossa
esperança, nosso todo, nosso Criador, nosso Redentor, e o presente e eterno
Salvador.
"Você deseja saber de
nossa vida imortal. Pois nossas escrituras sagradas nos explicam isto. Elas nos
ensinam que, crendo em Jesus Cristo, o Filho de Deus, e amando e servindo a
Deus na terra, moraremos com Ele em infinita e eterna bem-aventurança nos céus.
Elas também nos mostram como devemos viver a fim de agradar-Lhe aqui, enquanto
nos ensinam como iremos louvá-lO por sempre depois desta vida. Por elas
conhecemos que a morte, embora seja uma maldição, já não o é para o crente,
senão que melhor se converte numa bênção, já que "partir e estar com
Cristo é muito melhor" [7], em vez de permanecer aqui,
porque entramos na presença de "Aquele que nos amou e se entregou a si
mesmo por nós" [8]."
— Portanto — exclamou Marcelo—
, se isto é assim, façam-me conhecer a verdade. Porque isto é o que andei
procurando por longos anos; por isso orei ao Ser supremo de quem ouvi falar
somente. Você é o possuidor daquilo que ansiei saber. O fim e o objetivo de
minha vida se encontram aqui. Toda a noite está a nossa frente. Não me rejeites
nem me dilates mais; dize-me tudo de uma vez. É verdade que Deus revelou todo
isto, e que eu tenho estado em ignorância disso?
Lágrimas de gozo brilharam
nos olhos dos cristãos. Honório sussurrou umas palavras de oração em gratidão a
Deus. a continuação extraiu um manuscrito que desdobrou com carinhoso cuidado.
E prosseguiu falando:
— Aqui, amado jovem, você tem
a palavra de vida que nos chegou de Deus, que é a que tristeza gozo e paz ao
homem. Aqui encontramos tudo o que almeja a alma. Nestas palavras divinas
aprendemos o que não podemos achar em nenhuma outra parte. E ainda que a mente
acaricie estas verdades por toda uma vida, contudo nunca chegará a dominar a
máxima extensão das verdades gloriosas.
Então Honório abriu o livro e
começou a falar a Marcelo acerca de Jesus Cristo. Falou-lhe da promessa feita
no Éden de Um que haveria de ferir Satanás na cabeça; e a sucessão de profetas
que haviam predito a sua vinda; do povo escolhido por meio do qual Deus tinha
mantido vivo o conhecimento da verdade por tantas idades, e das obras
portentosas que eles haviam presenciado. Leu-lhe o anúncio de que o Filho de
Deus devia nascer de uma virgem. Leu sobre seu nascimento, sua infância, as
primeiras apresentações, seus milagres, seus ensinos. Tudo isso lhe leu,
agregando uns poucos comentários de sua parte, do sagrado manuscrito.
Seguidamente passou a relatar
o tratamento que Ele recebeu: as zombarias, o desprezo, a perseguição que
acelerou tudo até chegar a Ele ser traído e condenado a morte.
Finalmente leu a narração de
sua morte na cruz do Calvário.
O efeito disso tudo era
maravilhoso em Marcelo.
A luz parecia iluminar sua
mente. A santidade de Deus que abomina o pecado do homem; sua justiça que
demanda o castigo; sua paciência infinita que previu um modo de salvar suas
criaturas da ruína que elas mesmas tinham trazido sobre si; seu amor
incomensurável que o levou a dar seu Filho unigênito e bem-amado; esse amor que
O fez descer para sacrificar-se para a salvação dos homens; todo foi explicado
com claridade meridiana. Quando Honório chegou à culminação da dolorosa
história do Calvário, e ao ponto em que Jesus exclamou: "Deus meu, Deus
meu, por que me desamparaste?" [9] seguido do grito de triunfo:
"Está consumado!" [10], pôde-se ouvir um profundo
suspiro de Marcelo. E olhando através das lágrimas que umedeciam seus próprios
olhos, Honório viu a forma daquele homem forte inclinada e tremendo pela
emoção.
— Chega, chega — murmurou em
voz baixa— , me deixem pensar nEle:
Ao que nos amou,
Ao que nos lavou de nossos
pecados com seu próprio sangue...
E Marcelo escondeu o rosto
entre suas mãos. Honório elevou os olhos ao céu e orou. Os dois estavam
sozinhos, porque seus companheiros tinham-se retirado. A tênue luz de uma
lâmpada que estava numa pequena abobada detrás de Honório, iluminava debilmente
a cena. E assim ambos permaneceram em silêncio durante um longo tempo.
Finalmente Marcelo levantou a
cabeça.
— Eu sinto — disse— que eu
também tive culpa e causei a morte do Santo. Leia-me mais dessas palavras de
vida, porque a minha vida depende delas.
Então Honório voltou a lê-lhe
a história da crucifixão e do sepultamento de Jesus, a ressurreição da manhã do
terceiro dia, e sua ascensão à destra de Deus. Tm leu a vinda do Espírito Santo
no dia de Pentecoste, que batizou os crentes num único corpo, de sua permanente
morada que faz seu templo no corpo do crente, e de seu maravilhoso ministério
de glorificar a Cristo e de revelá-lO aos pecadores arrependidos.
Porém, não acabou ali; senão
que procurou trazer a paz à alma de Marcelo, lendo-lhe as palavras de Jesus
convidando o pecador a vir a Ele, e assegurando-lhe a vida eterna como
possessão real e presente no momento em que O aceita como Senhor e Salvador.
Leu também sobre "o novo nascimento", a nova vida e a promessa de
Jesus de voltar outra vez para recolher a todos aqueles que foram lavados com
seu sangue para encontrar-se com Ele nas alturas.
— É a palavra de Deus — exclamou
Marcelo— . É a voz desde os céus. Meu coração responde e aceita todo o que
ouvi. E eu sei que é a verdade eterna! Mas, como posso eu vir a ser possuidor
desta salvação? Meus olhos parecem ter sido iluminados e está dissipada toda
nuvem. Ao fim me conheço. Antes eu cria que era um homem justo e reto. Mas ao
lado do Santo, de quem tanto aprendi, eu fiquei afundado no pó; vejo que ante
Ele eu sou um criminoso, convicto e perdido. Como posso ser salvo?
— E como posso eu recebê-lo?
— A palavra está perto, ainda
em tua boca e em teu coração; quer dizer, a palavra de fé que nós predicamos,
que se você confessar com a boca o Senhor Jesus, e com o coração crer que Deus
o levantou dentre os mortos, será salvo. Porque com o coração se crê para
justiça, e com a boca se faz confissão para salvação [12].
— Mas não há nada que eu deva
fazer?
— Pela graça sois salvos,
por meio da fé; e essa salvação não vem de vós, é dom de Deus; não por obras,
para que ninguém se glorie [13]. O
salário do pecado é a morte; mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em
Cristo Jesus, nosso Senhor [14].
— Mas,
não há sacrifício que eu tenha que oferecer?
— Quem ofereceu um sacrifício
pelo pecado por sempre, e agora está sentado à direita do Pai; e pode salvar
para sempre a todos os que vêm a Deus por Ele, sendo que sempre vive e
intercede por eles.
— Ah, logo, se eu posso me
achegar a Ele, ensina-me as palavras, conduze-me ante Ele!
Na escuridão da gelada abóbada,
na solidão do solene silêncio, Honório ajoelhou-se, e Marcelo se inclinou ao
seu lado. O venerável cristão elevou sua voz em oração. Marcelo sentiu que sua
própria alma estava sendo elevada ao céu nesses momentos, e a presença mesma do
Salvador, pela virtude daquela fervorosa oração de fé viva. As palavras ecoavam
em sua própria alma e espírito; em seu profundo abatimento ele deixou sua
necessidade em mãos de seu companheiro, para que ele a apresentasse de forma
mais apropriada do que ele mesmo poderia fazer. Mas finalmente seus próprios
desejos de orar cresceram. A fé o alcançou, e com temor e tremor, porém com
real fé, sua alma foi fortalecida, até que finalmente Honório terminou, e sua
língua se soltou e elevou o clamor de seu coração:
— Senhor, eu creio, ajuda-me
em minha incredulidade!
Aquele único Mediador entre
Deus e os homens, Jesus Cristo homem, tinha vindo a ser real pela fé; e as
palavras de Jesus "Em verdade, em verdade te digo: quem ouve a minha
palavra, e crê naquele que me enviou, tem a vida eterna, e não entrará em
condenação (juízo), mas passou da morte para a vida... [15] E eu
lhes dou vida eterna (a minhas ovelhas) e nunca hão de perecer, e ninguém as arrebatará da
minha mão" [16], todas estas palavras foram
cridas, recebidas, desfrutadas.
As
horas se passaram. mas, quem poderia descrever acertadamente o progresso da
alma que passa de morta para vida? Basta com saber que quando nasceu o dia lá
fora, um dia mais glorioso tinha amanhecido na alma e no espírito de Marcelo
nas abobadas inferiores. Seus anelos tinham sido completamente satisfeitos; a
carga de seus pecados tinha-lhe sido tirada, e a paz de Deus por Jesus Cristo o
havia enchido.
O
segredo dos cristãos era seu, e ele havia-se convertido voluntariamente em
escravo de Jesus Cristo. Unido com seus irmãos em Cristo, agora ele também
podia cantar:
Ao que nos amou,
Ao que nos lavou de nossos
pecados,
Em seu próprio sangue;
A Ele seja glória e domínio
Pelos séculos dos séculos,
CAPÍTULO 6
A GRANDE NUVEM DE TESTEMUNHAS
Todos estes morreram em fé. [17]
Não demorou o novo convertido
em conhecer muito mais sobre os cristãos. Depois de um breve repouso,
levantou-se e se reuniu com Honório, quem se ofereceu para mostrar-lhe aspectos
do lugar onde moravam.
Pois aqueles a quem tinha
visto no serviço da noite anterior, eram somente uma parte dos moradores das
catacumbas. Seu número se elevava a muitos milhares, e estavam disseminados por
sua vasta extensão em pequenas comunidades, cada uma das quais tinha seus
próprios meios de comunicação com a cidade.
Assim foi que ele recorreu
grande distância acompanhado por Honório. Se maravilhava sobremaneira do número
de pessoas a quem encontrava; e embora soubesse que os cristãos eram numerosos,
não imaginava sequer que tão vasta proporção dele tivesse o valor de escolher
essa vida nas catacumbas.
Também não era seu interesse
pelos mortos inferior àquele pelos vivos. Ao passar junto aos túmulos lia
cuidadosamente as inscrições, e em todos eles descobria a mesma fé
imperturbável e a sublime esperança. Deleitava-se lendo, e o devoto interesse
que Honório prestava a estas piedosas memórias o convertia no mais simpático
dos guias.
— Ali — disse Honório— repousa
uma testemunha da verdade.
Marcelo olhou na direção que
ele indicava e leu o seguinte:
"PRIMÍCIO, EM PAZ,
DEPOIS DE MUITOS TORMENTOS, O MAIS VALENTE DOS MÁRTIRES. ELE VIVEU COMO TRINTA
E OITO ANOS. ESTA É UMA LEMBRANÇA DE SUA ESPOSA Que AMAVA AO Que BEM
MERECIA".
— Estes homens — disse
Honório— nos ensinam como devem morrer os cristãos. Mais na frente há um outro,
que também sofreu o mesmo que Primício.
"PAULO FOI MORTO
SOFRENDO TORTURAS, A FIM DE QUE GOZASSE DAS ETERNAS BEM-AVENTURANÇAS".
— E lá — agregou o ancião— ,
está a tumba de uma nobre dama, quem mostrou uma fortaleza tal que somente
Jesus Cristo pode conceder ao mais fraco de seus seguidores na hora da
necessidade:
"CLEMÊNCIA, TORTURADA,
REPOUSA. ELA RESSUSCITARÁ".
— Se fores chamado — disse
Honório— a passar pelo artigo de morte, o espírito instantaneamente está
"ausento do corpo e presente com o Senhor". A prometida volta de
nosso Senhor, a qual pode acontecer a qualquer momento, constitui "a
bendita esperança" dos cristãos doutrinados. "Porque
o mesmo Senhor descerá do céu com alarido, e com voz de arcanjo, e com a
trombeta de Deus; e os que morreram em Cristo ressuscitarão primeiro. Depois
nós, os que ficarmos vivos, seremos arrebatados juntamente com eles nas nuvens,
a encontrar o Senhor nos ares, e assim estaremos sempre com o Senhor" [18].
Honório continuou falando:
— Aqui repousa Constâncio,
quem em duplo sentido foi constante a seu Deus mediante uma dupla prova.
primeiro lhe deram veneno; mas como isso não fizesse nenhum efeito, foi morto a
espada.
"O GOLE MORTAL NÃO SE
ATREVEU A APRESENTAR A CONSTÂNCIO A COROA QUE SÓ AO AÇO FOI PERMITIDO OFERECÊ-LHE".
Assim caminharam ao longo das
muralhas, lendo as inscrições que se apresentavam a ambos lados. Novos
sentimentos assaltaram a Marcelo, conforme lia o glorioso catálogo de nomes.
Para ele foi toda uma história da Igreja de Jesus Cristo. Aqui estavam os atos
dos mártires expostos perante ele com palavras de fogo. Os rudes quadros que
enfeitavam muitos dos sepulcros continham todo o sentimento que as mais belas
obras dos hábeis artistas não poderiam produzir. As letras rudemente lavradas,
a escritura e os erros gramaticais que caracterizavam a muitos deles,
constituíam provas tangíveis dos tesouros do Evangelho para os pobres e
humildes. "Não são muitos os sábios segundo a carne, nem muitos os
poderosos, nem muitos os nobres que são chamados" [19], porém, "aos pobres é
anunciado o evangelho" [20].
Em muitos deles havia um
monograma, o qual era formado das letras iniciais dos títulos de Cristo
("Cristo o Senhor", em grego), as letras "X" e
"P" unidas, formando um monograma. Algumas tinham uma palma, emblema
da imortalidade e da vitória, o sinal daquelas palmas de glória que irão exibir
em suas mãos os inumeráveis remidos que comparecerão perante o trono. Outras
exibiam mais engenhosas e significativas inscrições.
— O que é isto? — interrompeu
Marcelo, indicando um quando de um barco.
— Mostra que o espírito
remido navega desde a terra até o repouso do céu.
— Que o que significa um
peixe, que já vi várias vezes?
— Usamos o peixe porque as
letras que formam seu nome em grego são as iniciais das palavras que expressam
a glória e a esperança do cristão. O "I" representa
"Jesus", o "X", Cristo; o "O" e o "U"
representam o "Filho de Deus"; o "S", "Salvador";
é assim, pois, que o peixe simboliza em seu nome: "Jesus Cristo, o Filho
de Deus, o Salvador".
— O que é este outro quadro
que também vi repetir-se, de um barco e um enorme mostro marinho?
— Esse é o Jonas, o profeta
de Deus, de quem você até agora nada conhece.
Honório em seguida relatou a
história de Jonas, e explicou como o escape dele do ventre do peixe lembrava e
mostrava ao cristão sua redenção das trevas do sepulcro.
— Esta gloriosa esperança da
ressurreição é um consolo inapreciável — disse ele— , e adoramos tê-lo presente
por meio dos diferentes símbolos. Ali também há um símbolo da mesma abençoada
verdade: a pomba levando a Noé o ramo de oliveira. — teve que relatar a Marcelo
a história do dilúvio, a fim que aquele pudesse compreender o significado da
representação— . Porém, de todos os símbolos que se usam, nenhum é tão claro
como este — e indicou um quadro da ressurreição de Lázaro.
— Ali também — continuou
Honório— está a âncora, símbolo da esperança pela qual os cristãos, enquanto
atirados de um lado ao outro pelas implacáveis ondas da vida, se mantêm firmes
rumo seu lar celestial.
"Lá pode ver o galo; é o
símbolo da vigilância, porque o Senhor nos disse: "Vigiai e orai" [21]. Igualmente lá temos o
cordeiro, símbolo da inocência e ternura, e ao mesmo tempo traz à nossa memória
o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, que levou nossos pecados e por
cujo sacrifício temos a vida eterna e o perdão. Ali novamente temos a pomba,
que como o cordeiro, representa a inocência; e também outra vez lá, levando o
ramo de oliveira, símbolo da paz.
"Lá estão as letras alfa
e ômega, a primeira e a última do alfabeto grego, que representam a nosso
Senhor, porque você já sabe que Ele disse: "Eu sou o Alfa e o Ômega" [22]. E também a coroa, que nos
lembra essa coroa incorruptível que o Senhor, justo juiz, nos dará [23]. É assim como nos compraz
rodear-nos com tudo o que nos aviva a lembrança do gozo que nos espera.
Ensinados deste modo, olhamos desde este ambiente de tristeza e trevas, e
graças a uma viva fé vemos sobre nós a luz da glória eterna".
— Aqui — disse Marcelo,
detendo-se— , vejo algo que parece adaptar-se a minha condição. Parece
realmente profético. Talvez eu também seja chamado a dar meu testemunho de
Jesus Cristo. Oh, que eu seja achado fiel!
"EM CRISTO, NO TEMPO DO
IMPERADOR ADRIANO, MÁRIO, UM JOVEM OFICIAL MILITAR, QUE VIVEU O SUFICIENTE,
DERRAMOU SEU SANGUE POR CRISTO E MORREU EM PAZ. ESTE É UMA LEMBRANÇA DE SEUS
AMIGOS COM LÁGRIMAS E TEMOR".
— "No mundo tereis
tribulações; mas tende bom ânimo, eu venci o mundo" [24]. Assim nos assegura Cristo;
mas ao mesmo tempo que nos prevê contra o mal, nos consola com sua promessa de
apóio. nEle achamos graça suficiente para nós.
— Que o exemplo do jovem
oficial seja para mim — disse Marcelo— . Eu posso derramar meu sangue por
Cristo Jesus igual que ele. Que eu morra igualmente fiel como ele! Morar aqui
entre meus irmãos com epitáfio semelhante será a honra suprema, e não um
mausoléu como o de Cecília Metella.
E desse modo continuaram
caminhando.
Marcelo disse com entusiasmo:
— Quão doce é a morte do
cristão! O horror da morte fugiu. Para ele se trata só de um sonho
bem-aventurado, enquanto o espírito está com o Senhor esperando a ressurreição,
e a morte, em vez de causar terror, está associada com pensamentos de vitória e
repouso.
"O LUGAR DO SONO DE
ELPIS".
"ZÓTICO JAZ AQUI
DURMINDO".
"ASELO DORME EM
CRISTO".
"MARTÍRIA DORME EM PAZ".
"VIDÁLIA, NA PAZ DE
CRISTO".
"NICÈFORO, UMA ALMA
DOCE, NO LUGAR DE REFRIGÉRIO".
— Algumas destas inscrições
falam do caráter dos irmãos idos — disse, Honório— ; olha estas:
"MAXÍMIO, QUEM VIVEU
VINTE E TRÊS ANOS, AMIGO DE TODOS OS HOMENS EM CRISTO".
"NAS QUINTAS CALENDAS DE
NOVEMBRO, DURMIU GREGÔNIO, AMIGO DE TODOS E INIMIGO DE NINGUÉM".
— E aqui também — prosseguiu
o ancião— , outras que nos falam de suas vidas privadas e de suas experiências
domésticas:
"CECÍLIO, O ESPOSO, A
CECÍLIA PLACINDA, MINHA ESPOSA DE EXCELSA MEMÓRIA, COM QUEM VIVI DEZ ANOS SEM
NENHUMA DISCUSSÃO, EM CRISTO JESUS, FILHO DE DEUS, SALVADOR".
"CONSAGRADO A CRISTO, O
DEUS SUPREMO, VITALI, ENTERRADA EM SÁBADO, CALENDAS DE AGOSTO. TINHA VINTE E
CINCO ANOS E OITO MESES DE IDADE. VIVEU COM SEU ESPOSO DEZ ANOS E TRINTA DIAS.
EM CRISTO, O PRIMEIRO E O ÚLTIMO".
"A DOMÍNIA, MINHA MUITO
DOCE E INOCENTE ESPOSA, QUEM VIVEU DEZESSETE ANOS E QUATRO MESES E FOI CASADA
DOIS ANOS, QUATRO MESES E NOVE DIAS. COM QUEM EU NÃO PUDE VIVER, POR CAUSA DE
MINHAS VIAGENS, MAIS DE SEIS MESES, DURANTE AS QUAIS LHE MOSTREI MEU AMOR COMO
O SENTIA. JAMAIS SE AMARAM TANTO OUTROS. ENTERRADA O DIA QUINZE, ANTES DAS
CALENDAS DE JUNHO".
"A CLÁUDIO, AFETUOSO E
DIGNO SER QUE ME AMOU, E VIVEU VINTE E CINCO ANOS EM CRISTO".
— Eis aqui o tributo de um
pai amante — disse Marcelo ao ler o seguinte:
"LOURENÇO, A SEU
DOCÍSSIMO Filho SEVERO. FOI LEVADO PELOS ANJOS NO SÉTIMO IDUS DE JANEIRO".
— E aqui tem um de uma
esposa:
"DOMÍCIO EM PAZ, LEA
FRÍGIO ESTÁ".
— Sim — disse Honório— , pela
fé em Jesus Cristo (ou como tu costumas dizer, a "religião"), o
crente recebe uma nova e divina natureza que lhe transmite o Espírito Santo,
que ao mesmo tempo implanta o amor de Deus, o qual o faz susceptível aos mais
delicados afetos para os amigos e relacionados. Ainda que seja verdade que
permanece a natureza do antigo Adão, que não melhora, nem também não se pode.
Continuando seu recorrido,
acharam muitos epitáfios mais que mostravam o doce amor pelos parentes mortos.
"CONSTÂNCIA, DE
MARAVILHOSA BELEZA E AMABILIDADE, E QUE VIVEU DEZOITO ANOS E SEIS MESES COM
DEZESSEIS DIAS,. CONSTÂNCIA EM PAS".
"SIMPLÍCIO, DE BOA E
FELIZ MEMÓRIA, QUE VIVEU VINTE E TRÊS ANOS E QUARENTA E TRÊS DIAS EM PAS. ESTE
MONUMENTO O FEZ SEU IRMÃO".
"A ADSERTOR, NOSSO
FILHO, DOCE E QUERIDO, O MAIS INOCENTE E INCOMPARÁVEL, QUE VIVEU DEZESSETE ANOS
E SEIS MESES COM OITO DIAS. LEMBRANÇA DE SEU PAI E DE SUA MÃE".
"A JANUÁRIO, DOCE E BOM
FILHO, HONRADO E AMADO DE TODOS, QUE VIVEU VINTE E TRÊS ANOS, CINCO MESES E
VINTE E DOIS DIAS".
"SEUS PAIS A LAURINA,
MAIS DOCE QUE O MEL, DORME EM PAZ".
"À SANTA ALMA DE
INOCENTE, QUE VIVEU COMO TRÊS ANOS".
"DOMICIANO, UMA ALMA
INOCENTE, DORME EM PAZ".
"ADEUS, OH SABINA. ELA
VIVEU OITO ANOS, OITO MESES E VINTE E DOIS DIAS. QUE VIVAS TÃO DOCEMENTE COM DEUS".
"EM CRISTO, MORREU O
PRIMEIRO DE SETEMBRO, POMPEJANO O INOCENTE, QUEM VIVEU SEIS ANOS E NOVE MESES
COM OITO DIAS E QUATRO HORAS. ELE DORME EM PAZ".
"A SEU DIGNÍSSIMO FILHO
CALPÙRNIO, LEMBRANÇA DE SEUS PAIS: ELE VIVEU CINCO ANOS, OITO MESES E DEZ DIAS,
E PARTIU EM PAZ O TREZE DE JUNHO".
— Ao epitáfio deste menino — disse
Marcelo— , eles agregaram os símbolos de paz e glória.
Indicou o sepulcro de uma
criança, sobre cuja pedra estavam desenhadas uma pomba e uma coroa de louros,
juntamente com a seguinte inscrição:
"RESPECTO, QUEM VIVEU
CINCO ANOS E OITO MESES, DORME EM PAZ".
E continuou falando Marcelo:
— E este tem uma palma, o
símbolo da vitória.
Também atraíram sua atenção
os epitáfios sobre os sepulcros das mulheres que tinham sido esposas de anciãos
ministros cristãos:
"MINHA ESPOSA LAURENTINA
ME FEZ ESTE SEPULCRO. ELA SEMPRE IDÔNEA A MINHA DISPOSIÇÃO, VENERÁVEL E
FIEL".
"POR FIM FOI ESMAGADA A
INVEJA. O BISPO LEON PASSOU SEU OCTOGÉSIMO ANO".
"O LUGAR DE BASÍLIO O
PRESBÍTERO E SUA FELICITAS. ELES MESMOS SE PREPARARAM ESTE TÚMULO".
"A QUE FOI A FELIZ FILHA
DO PRESBÍTERO GABINO. AQUI REPOUSA SUSANA, UNIDA EM PAZ COM SEU PAI".
"CLÁUDIO ATICIANO,
LEITOR, E CLÁUDIA FELICÍSSIMA, SUA ESPOSA".
— Aqui se vê — disse Marcelo,
um túmulo maior— . Há duas pessoas sepultadas aqui?
— Sim, é o que chamamos bisomum,
pois dois ocupam esse túmulo. Lê a inscrição:
"O BISOMUM DE SABINO.
ELE O FEZ PARA SI MESMO DURANTE SUA VIDA NO CEMITÉRIO DE BALBINA NA NOVA
CRIPTA".
E Honório continuou dizendo:
— Algumas vezes se sepultam
três num mesmo sepulcro. Em outros lugares você vai ver que um maior número foi
sepultado num mesmo lugar; porque quando se agrava a perseguição, nem sempre
existe a possibilidade de dedicar a cada pessoa a atenção devida separadamente,
como desejaríamos. Mais para lá há uma placa que sinala o lugar de sepultura de
muitos mártires, cujos nomes são desconhecidos, mas cujas memórias se abençoam.
E indicou uma pedra que tinha
a seguinte inscrição:
"MARCELA E QUINHENTOS
CINQÜENTA MÁRTIRES DE CRISTO".
— Aqui tem um mais longo — disse
Marcelo, e suas palavras ecoarão nos corações de todos nós.
E leram o seguinte com a mais
profunda emoção:
"EM CRISTO. ALESSANDRO
NÃO ESTÁ MORTO, SENÃO QUE VIVE ALÉM DAS ESTRELAS, E SEU CORPO REPOUSA NESTE
TÚMULO. ELE RENDEU SUA VIDA SOB O IMPERADOR ANTONINO, QUEM EMBORA PUDESSE TER
PREVISTO QUE GRANDE BENEFÍCIO LHE RESULTARIA DE SEUS SERVIÇOS, SÓ LHE OFERECEU
ÓDIO EM VEZ DE GRAÇA, PORQUE ENQUANTO ESTAVA SOBRE SEUS JOELHOS, JÁ PARA
OFERECER SACRIFÍCIO AO DEUS VERDADEIRO, FOI TIRADO PARA SER EXECUTADO. OH,
TEMPOS TRISTES AQUELES NOS QUAIS AINDA ENTRE OS RITOS E ORAÇÕES SAGRADAS, NEM
AINDA NAS CAVERNAS PODÍAMOS ESTAR SEGUROS! O QUE PODE SER MAIS MISERÁVEL QUE
UMA VIDA TAL? E QUE MORTE PIOR QUE AQUELA EM QUE NÃO PODEM NEM SEQUER SER
SEPULTADOS PELOS AMIGOS E PARENTES? NO FIM ELES BRILHAM NO CÉU. APENAS VIVEU
QUEM VIVEU EM TEMPOS CRISTÃOS".
— Este — disse Honório— é
lugar de repouso de um irmão bem-amado, cuja memória ainda se recorda com
carinho entre as igrejas todas. Em volta desta tumba viemos celebrar uma festa
de amor no aniversário de seu nascimento. Pois nesta festa são demolidas todas
as barreiras das diferentes categorias sociais e classes e tribos e línguas e
povos. Nós todos somos irmãos em Cristo Jesus, porque lembramos que como Cristo
nos amou, assim também devemos amar-nos uns aos outros.
Neste recorrido, Marcelo teve
ampla oportunidade de verificar por si mesmo a presença daquele fraternal amor
ao qual aludia Honório. Encontrou homens, mulheres e crianças de toda classe e
de toda idade. Homens que haviam ocupado os mais elevados postos na Roma, se
associavam em amigável comunhão com aqueles que apenas estavam no nível dos
escravos; ainda aqueles que antes tinham sido cruéis e implacáveis
perseguidores, agora se ajuntavam em comunhão de amor que aqueles que antes
foram objeto de seu ódio mortal. Igualmente, o sacerdote judeu, liberado do
jugo da Lei, que não podia cumprir e que era "ministério de morte"
para ele, agora caminhava de mãos dadas com os gentios que antes odiava. O
grego havia chegado a descobrir na "loucura" do Evangelho a mesma
sabedoria infinita. E o desprezo que antes tinha sentido pelos seguidores de
Jesus havia cedido espaço ao afeto mais afetuoso. O egoísmo e a ambição, o
orgulho e a inveja, todas as baixas paixões da vida humana pareciam ter-se
esfumado perante o poder ilimitado do amor cristão. A fé em Cristo Jesus morava
em seus corações em toda sua plenitude, e sua bendita influência via-se aqui,
como não era possível vê-la em nenhuma outra ocasião; não porque sua natureza e
seu poder tivessem sido mudados por eles, pessoal e intencionalmente, senão
porque a perseguição universal havia alcançado a todos por igual e os havia privado
de suas possessões terrenas, separando-os das tentações e ambições mundanas; e
pelo amor de Cristo que constrange, e pela suprema simpatia que engendra o
sofrimento em comum, tinha a virtude de uni-los uns aos outros.
— A adoração ao Deus
verdadeiro — disse Honório— difere de toda falsa adoração. Os pagãos devem
entrar em seus templos e ali, por meio de um sacerdote, igualmente pecador como
todos, oferecer uma e outra vez sacrifícios aos demônios, que obviamente jamais
podem liberar a ninguém de seus pecados. Contudo Cristo se ofereceu uma só vez
por todos nós, sem mácula perante Deus, o Sacrifício único feito uma única vez
e para sempre. E cada um de seus seguidores pode agora se aproximar a Deus por
meio de Jesus Cristo, nosso bendito e santíssimo Sumo Sacerdote nos próprios
céus, sendo assim cada crente constituído rei e sacerdote por Jesus Cristo,
para Deus. por conseguinte, para nós não é questão de tempo ou espaço, no que
diz respeito à adoração; já seja que nos deixem em nossas capelas, ou que nos
proscrevam completamente delas e de toda a terra. Pois oração eu é o trono de
nosso Deus, e o universo é seu templo, e qualquer de seus filhos pode elevar a
Ele sua voz desde o lugar onde se encontre, qualquer que seja, e em qualquer
momento, e adorar ao Pai.
A travessia de Marcelo se
estendeu até uma grande distância e por longo tempo. Pese a ter sido prevenido
desta extensão, se maravilhava ao ver por si mesmo o enorme que era. Nem a
metade haviam-lhe dito; e embora tivesse recorrido tanto, era fácil compreender
que todo isso era somente uma fração da enorme extensão.
A altura média dos corredores
era como de uns dois metros e meio; porém em muitos lugares se elevava até uns
quatro metros, ou ainda cinco. Depois, as freqüentes capelas e salões que
haviam formado ampliando os arcos, davam maior espaço aos habitantes, e lhes
possibilitava viver e deslocar-se por maiores espaços e com mais liberdade.
Também em muitos lugares havia aberturas no teto, através das quais penetravam
débeis raios de luz do exterior. Estes eram escolhidos como lugares de reunião,
mas não para viver. A existência da bendita luz do dia, por fraca que fosse,
agradava tanto que era impossível de expressar, servindo por uns instantes
brevíssimos para mitigar a tenebrosidade circundante.
Marcelo viu alguns lugares
que tinham sido amuralhados, formando terminações abruptas do corredor, mas se
abriam outras espécies de ramais que contornavam o lugar, e depois se
prolongavam como anteriormente.
— O que é isso que se encerra
assim? — perguntou.
— É uma grande tumba romana —
disse Honório— . Ao escavar este corredor, os operários deram contra ela, e
assim foi que pararam de escavar e contornaram o lugar, amuralhando-a
previamente. Isso não foi, naturalmente, por temor a perturbar o túmulo, senão porque
tanto na morte como na vida igualmente, o cristão deseja seguir o mandamento do
Senhor que diz: "saí vós do meio deles e separai-vos" [26].
— A perseguição se enfurece
contra nós e nos rodeia e nos encerra — disse Marcelo— . Quanto tempo será
perseguido o povo de Deus? quanto tempo vai nos afligir o inimigo?
Honório respondeu:
— Tal é o clamor de muitos
entre nós. Mas não é bom se queixar. O Senhor tem sido benigno com seu povo.
Pois durante todo o Império passaram muitas gerações sob a proteção das leis e
sem serem incomodados. É verdade que tivemos perseguições terríveis, nas quais
milhares morreram em agonia, contudo sempre acabaram e deixaram em paz a
Igreja.
— Todas as perseguições que
até o momento recebemos serviram para purificar os corações do povo de Deus e
para exaltar sua fé. Ele sabe o que é melhor para nós. Estamos em suas mãos, e
Ele não nos dará carga maior da que podemos suportar [27]. Sejamos sóbrios e vigiemos
em oração, oh, estimado Marcelo, porque a presente tormenta nos diz claramente
que o dia grande e terrível, tanto tempo antes profetizado sobre o mundo, se
aproxima.
E assim Marcelo seguiu
andando em companhia de Honório, conversando e aprendendo a cada instante novas
coisas da doutrina da verdade de Deus e as experiências de seu povo. E as
evidências de seu amor, sua pureza, sua fortaleza, sua fé inquebrantável,
penetraram nas profundezas de sua alma.
A experiência que ele mesmo
tinha desfrutado não era transitória. Cada coisa nova que contemplava não fazia
senão avivar nele o vivo anseio de unir-se com a fé e a sorte do povo de Deus.
e em harmonia com esse sentir, antes do seguinte Dia do Senhor, se batizou
"na morte de Cristo" [28], no nome do Pai, do Filho e
do Espírito Santo [29].
Na manhã do Dia do Senhor,
sentou-se em volta da Mesa do Senhor, em companhia dos outros cristãos. Ali
todos eles celebraram aquela simples mas afetuosa festa em memória da Ceia do
Senhor, pela qual os cristãos se proclamavam mortos com Jesus, enquanto
esperavam seu regresso. Honório elevou a oferta de uma oração em ação de graças
pelo que partilhavam. E pela primeira vez Marcelo gozou da participação do pão
e do vinho, aqueles símbolos sacratíssimos do corpo e do sangue de seu Senhor
crucificado por ele.
E, tendo cantado um hino,
saíram. [30]
CAPÍTULO 7
A CONFISSÃO DE FÉ
Quatro dias tinham
transcorrido desde que o jovem oficial saíra de seu gabinete. Dias estes cheios
de acontecimentos para ele, dias de infinita importância. Dele haveria de
depender sua felicidade suprema ou suas angústias. Porém a busca da verdade
desta alma anelante não tinha sido em vão, tendo sido renovada no Espírito
Santo [32].
Havia tomado sua resolução.
Por um lado se lhe oferecia a fama, a honra e a riqueza, e do outro a pobreza,
a necessidade e a angústia. Com tudo em plena consciência, ele havia feito sua
eleição; tinha-se voltado para a última sem um único instante de vacilação. Ele
havia escolhido "antes ser maltratado com o povo de Deus, do que por um
pouco de tempo ter o gozo do pecado" [33].
Ao seu regresso visitou o general
e se acusou perante ele. Informou-lhe que tinha estado entre os cristãos, que
não podia cumprir a comissão que lhe haviam encomendado, e que se submetia
voluntariamente a sofrer as conseqüências. O general, com a severidade a que
havia-se exposto, lhe ordenou que passa-se a seu quartel.
Ali, em meio à mais profunda
meditação, e fazendo conjecturas do que resultaria de tudo isso, foi
interrompido pelo ingresso de Lúculo. Seu amigo o cumprimentou muito
afetuosamente, mas em seu rosto se evidenciava uma profunda ansiedade.
— Acabo de encontrar-me com o
general — disse ele— , quem me fez chamar para dar-me uma mensagem para você.
Porém, primeiramente, dize-me: o que você fez?
Marcelo lhe relatou tudo
detalhadamente desde o momento de sua partida até sua volta, sem ocultar-lhe
absolutamente nada. Sua cristalina boa fé evidenciava o poderosa, sincera e
verdadeira que tinha sido a obra eterna do Espírito Santo nele. Depois contou a
entrevista que tivera com o general.
— Eu entrei em sua habitação
com o claro sentimento da importância do passo que dava. Ia eu cometer um ato
reputado como virtual traição e crime, e cuja sanção não é menos que a morte.
Porém, eu não podia fazer outra coisa.
"Ele me recebeu com
total afabilidade, animado pela idéia de que eu tivesse conseguido um êxito de
importância na busca que me haviam encomendado. Eu lhe disse que desde que sai
tinha estado entre os cristãos, e que pelo que tinha visto, estava obrigado a
mudar meus sentimentos para com eles. Anteriormente eu tinha pensado que eles
eram inimigos do Estado e dignos de morte; porém tinha descoberto que se
tratava de pessoas que são leais súbditos do imperador e muito virtuosos.
Contra tais pessoas não poderia eu estender minha espada jamais, e antes de
fazê-lo, a entregava.
"Diante do qual ele me
disse: 'Os sentimentos de um soldado não têm nada a ver com seus deveres'. 'Porém
meus deveres para com o Deus que me criou são mais fortes que qualquer dever
que eu tenha com o homem', respondi.
"A isto replicou: 'Acaso
tua simpatia pelos cristãos chegou que enlouquecer-te? Não percebe que o que
está fazendo é traição?'.
"Eu me inclinei e
respondi que estava resolvido a afrontas as conseqüências.
"'Rapaz precipitado',
exclamou severamente, 'retira-te do quartel e eu te comunicarei minha decisão'.
"E assim foi que me
transladei aqui, onde permaneci desde aquele momento, esperando ansiosamente
minha sentença".
Lúculo tinha ouvido toda a
narração que havia feito Marcelo sem dizer palavra, nem sequer fazer um gesto.
Uma expressão de triste surpresa em seu rosto evidenciava o que eram seus
sentimentos. E conforme Marcelo concluiu, falou num tom de quem deplora e
lamenta.
— Verdadeiramente tanto você
como eu sabemos o que deve ser aquela sentença. Pois a disciplina romana, ainda
em tempos normais, não pode ser tomada com leviandade, e tanto pior agora que
os sentimentos do governo estão exaltados até o sumo grau contra aqueles
cristãos. Pois, se você insistir em teu proceder, estará arruinado.
— Eu te expus todas as minhas
razões.
— Sim, Marcelo, eu conheço
teu caráter puro e sincero. Você sempre foi de uma mente piedosa. Você amou os
nobres ensinos da filosofia. E não te sentes satisfeito com tudo isso como
antes? Por que deverias ser seduzido pela miserável doutrina de um judeu
crucificado?
— Jamais estive satisfeito
com a filosofia de que me falas. Você mesmo sabe a consciência que não há nela
nada de verdade em que a alma possa repousar. Mas o cristianismo é a verdade de
Deus, trazida por Ele mesmo, e santificada pela sua própria morte.
— Já me explicaste em toda
sua integridade todo o credo cristão. Pois teu próprio entusiasmo fez com que
me resultasse atraente, devo confessar; e se todos seu seguidores fossem
realmente como você é, meu muito prezado Marcelo, poderia adaptar-se para
chegar a ser a bênção final do mundo. Mas não vim aqui para argumentar sobre a
religião. Venho a falar sobre você mesmo. Estás em iminente perigo, meu querido
amigo; tua posição, tua honra, teu cargo, tua própria vida estão em perigo.
Considera pois atentamente o que estás fazendo. Foi-te confiada uma
importantíssima missão, em cujo cumprimento saíste. Esperava-se que voltasses
trazendo informes importantes. Pelo contrário, você volta e se apresenta perante
o general informando que agora pertence ao bando do inimigo, que se converteu
num deles de todo coração e que se nega a utilizar as armas romanas contra
eles. Então, não compreendes que se o soldado pudesse escolher com quem vai
lutar, não haveria disciplina? Pois deve cumprir ordens e nada mais. Não tenho
razão?
— É, você tem razão, Lúculo.
— A questão que você tem que
decidir não é se escolhe a filosofia ou o cristianismo, senão se você é cristão
ou soldado romano. Porque conforme estão as coisas nestes tempos, é
absolutamente impossível ser soldado romano e ao mesmo tempo cristão. Então,
deves renunciar a uma das duas escolhas. Mas não somente isso, senão que se
você insistir em tua decisão de ser cristão, deverás compartir tua sorte com
eles, porque não pode se fazer a menor distinção em teu favor. Pelo contrário,
se desejas continuar como soldado, deves pelejar contra os cristãos.
— Não cabe a menor dúvida em
quanto a essa questão.
— Você sabe que tem amigos
cordiais que estão prazerosos de esquecer teu grande e precipitado delito,
Marcelo. Pois te conheço que tens esse caráter que facilmente se entusiasma, e
supliquei ao general por você. Ele também te tem em grande estima pelas tuas
qualidades de soldado valente. Está animado de toda a boa vontade de perdoar-te
sob certas circunstâncias.
— Quais são elas?
— A mais misericordiosa de
todas as condições. Que deites no esquecimento todos os quatro dias passados.
Que se desvaneçam por completo de tua memória. Retoma tua comissão. Toma teus
soldados sob tuas ordens e no ato compreende o cumprimento de teu dever,
procedendo à detenção desses cristãos.
— Lúculo — exclamou Marcelo,
levantando-se de seu assento, com os braços cruzados— . Estimo-te muitíssimo,
como amigo que você é, e estou agradecendo teu fiel afeto. Jamais poderei
esquecê-lo. Mas agora tenho dentro de mim algo que te resulta por completo
desconhecido, o qual é muito mais precioso e forte que todas as honras do
estado. Trata-se, pois, nada menos que do amor de Deus. por esse amor estou
disposto a deixar tudo: honra, categoria, e a própria vida. Minha decisão é
irrevogável. Eu sou cristão.
Lúculo continuou sentado.
Mudo de surpresa e comovido em extremo, contemplava seu amigo. Para ele era
demasiado conhecido o caráter deste em suas resoluções, e via com profunda pena
como suas palavras persuasivas tinham fracassado. Depois de muito voltou a
falar. Recorreu a todos os argumentos que podia imaginar. Invocou todas as
idéias que poderiam influir nele. Falou do terrível destino que lhe esperava, e
da vingança encolerizada que se empregaria particularmente contra ele. Mas
todas suas palavras foram completamente inúteis. Finalmente se levantou, vítima
da mais profunda tristeza.
— Marcelo — disse— , você
está tentando o destino, vai apressadamente rumo a sorte mais terrível. Pois
todo o que a fortuna pode deparar está te sendo oferecido, e tu lhe dás as
costas para jogar tua sorte juntamente com aqueles proscritos miseráveis. Eu
cumpri com meu dever de amigo de tentar fazer-te voltar da loucura, mas tudo quanto
eu possa fazer é inútil perante tua obstinação.
"Eu te trouxe a sentença
do general. Você foi degradado da categoria de oficial. E está a ordem de
arresto em tua contra, acusado de ser cristão. Amanhã serás apreendido e
entregue para sofrer o castigo. Mas ainda tens muitas horas a tua disposição, e
ainda tenho eu a possibilidade de alcançar a satisfação, embora penosa, de
ajudar-te a escapar. Foge, pois, agora mesmo. Apressa-te, porque não há tempo
que perder. Existe um único lugar no mundo onde podes estar a coberto da
vingança do César".
Marcelo o escutou em silêncio
absoluto. Lentamente tirou suas armas e as colocou a um lado. Com tristeza
desatou a suntuosa armadura que levava com tanto merecimento e orgulho. E assim
ficou vestido com sua simples túnica, a disposição de seu amigo.
— Lúculo, mais uma vez te
repito que jamais esquecerei tua fiel amizade. Quanto desejo que estivéssemos
voando juntos numa fuga perfeita, que tuas orações pudessem ascender como as
minhas para o trono dAquele adequadamente eu sirvo! Porém, chega. Me retiro.
Adeus!
— Adeus, Marcelo. Jamais nos
voltaremos a encontrar na vida. Se alguma vez estivesses em necessidade ou em
perigo, sabes muito bem em quem confiar.
Os dois jovens se abraçaram,
e Marcelo partiu apressadamente.
Saiu do quartel, avançando
diretamente até chegar no fórum. Naquele lugar encontrou-se rodeado de templos
e monumentos e colunas de mármore. Ali estava o Arco de Tito, medindo o largo
da Via Sacra. Ali se levantava a forma gigantesca do palácio imperial, da mais
rica arquitetura, com régios adornos de mármores riquíssimos, culminando com as
brilhantes decorações douradas. A um lado se levantavam as muralhas imensas do Coliseu.
Além delas podia contemplar-se a cúpula estupenda do Templo da Paz, e no outro
extremo, o Monte Capitolino destacava seus históricos cumes, coroado de
apinhados templos estatais, que se erguiam como desafiando as alturas e
cortando os ares sob o azul do céu.
Para lá dirigiu seus passos,
e ascendeu as escarpadas pendentes até dominar o mesmo cume. E uma vez lá cima,
olhou em volta o amplo e soberbo panorama que lhe oferecia a vista. O lugar
mesmo onde estava era um amplo quadrado pavimentado de mármore e rodeado de
templos senhoriais. A um lado via-se o Campus Martius, rodeado pelo Tíber, cuja
avenida amarelada serpentava penetrando nas profundezas do horizonte até o
Mediterrâneo. Por todos os outros lados da cidade monopolizava toda a extensão
desigual, pressionando até suas estreitas muralhas, e excedendo-as por meio de
ruas que se irradiavam até grande distância em todas direções, invadindo o
campo. Os templos, as colunas e os monumentos alçavam suas cornijas orgulhosas.
Inúmeras estatuas enchiam as ruas com uma população de formas esculturais,
numerosas fontes borrifavam o ar, as carruagens se deslocavam barulhentas pelas
ruas, as legiões de Roma iam e vinham com ares de desfile militar, e assim por
onde olhava podia contemplar que surgia a borrascosa onda da vida da cidade
imperial.
Na distância se estendia a
planície, salpicada de incontáveis vilas, casas e palácios, de uma rica e
exuberante vegetação; as moradas da paz e da abundância. A um lado podia ver-se
a silhueta azul doa Apeninos, dignamente coroados de neve; do outro lado, as
turbulentas ondas do Mediterrâneo açoitavam as praias da indomável distância.
Repentinamente Marcelo ficou
perturbado, o melhor ainda, trazido de volta a si mesmo por um grito. Voltou-se
de imediato. Um homem avançado em anos e coberto de escassa vestimenta, de
rosto macilento e frenéticas gesticulações, clamava a grande voz expressões
ininteligíveis de terror e denúncia. Seu olhar selvagem e suas atitudes ferozes
evidenciavam que, pelo menos em parte, estava louco.
Caiu, caiu a grande
Babilônia,
e se tornou morada de
demônios,
e covil de todo espírito imundo,
e esconderijo de toda ave
imunda e odiosa. [34]
Porque já os seus pecados se
acumularam até ao céu,
E Deus se lembrou das
iniqüidades dela.
Tornai-lhe a dar como ela vos
tem dado,
E retribuí-lhe em dobro
conforme as suas obras... [35]
Quanto
ela se glorificou, e em delícias esteve... [36]
Portanto,
num dia virão as suas pragas,
a
morte, e o pranto, e a fome;
e
será queimada no fogo;
porque
é forte o Senhor Deus que a julga.
E
os reis da terra, que se prostituíram com ela,
e
viveram em delícias, a chorarão,
e
sobre ela prantearão,
quando
virem a fumaça do seu incêndio;
Estando
de longe pelo temor do seu tormento, dizendo:
Ai!
ai daquela grande Babilônia, aquela forte cidade!
Pois
numa hora veio o seu juízo. [37]
Os
mercadores destas coisas,
que
com elas se enriqueceram,
estarão
de longe, pelo temor do seu tormento,
chorando
e lamentando,
E
dizendo: Ai, ai daquela grande cidade!
que
estava vestida de linho fino, de púrpura, de escarlata;
e
adornada com ouro e pedras preciosas e pérolas!
porque
numa hora foram assoladas tantas riquezas.
E
todo o piloto, e todo o que navega em naus,
e
todo o marinheiro,
e
todos os que negociam no mar se puseram de longe;
E,
vendo a fumaça do seu incêndio, clamaram, dizendo:
Que
cidade é semelhante a esta grande cidade?
E
lançaram pó sobre as suas cabeças,
e
clamaram, chorando, e lamentando, e dizendo:
Ai,
ai daquela grande cidade!
na
qual todos os que tinham naus no mar
se
enriqueceram em razão da sua opulência;
porque
numa hora foi assolada.
Alegra-te
sobre ela, oh céu, e vós,
santos
apóstolos e profetas;
porque
já Deus julgou a vossa causa quanto a ela. [38]
Uma vasta multidão se reuniu
em volta dele, confusa e surpreendida, mas apenas havia cessado de falar quando
apareceram alguns soldados e o levaram.
"Sem dúvida é algum
pobre cristão, que por causa do sofrimento perdeu o cérebro", pensou
Marcelo. E conforme o homem era levado, ainda continuava a clamar suas
terríveis denúncias, e uma grande multidão o seguiu, gritando e zombando. o
barulho não demorou em perder-se na distância.
"Não há tempo que
perder. Eu devo ir embora", disse para si Marcelo, e partiu.
CAPÍTULO 8
A VIDA NAS CATACUMBAS
Oh, trevas, trevas, trevas no
ardor do sol do meio dia,
Escuridão irrevogável,
eclipse total,
Sem esperança alguma de que chegue
o dia!
Com lágrimas de gozo lhe
deram as boas-vindas a sua volta às catacumbas. Com vivo entusiasmo ouviram as
referências de suas entrevistas com seus superiores; e ao mesmo tempo que
partilhavam sua compreensão de suas dificuldades, se regozijavam de que tivesse
sido digno de sofrer por Cristo.
Em meio de todo este novo
ambiente, aprendia mais da verdade a cada dia, e igualmente contemplava o que
deviam sofrer os seguidores do Senhor. A vida das catacumbas abriu ante ele sem
a menor reserva todos seus maravilhosos segredos e sua variedade.
A vasta multidão que morava
nas entranhas da terra recebia provisões graças a sua permanente comunicação
com a cidade hostil de cima. Essas operações se realizavam ao amparo da noite.
Esta ousada e perigosa tarefa se cumpria pelos homens mais resolutos que se
ofereciam voluntariamente por isso. Porém, ainda mulheres e crianças
completavam estes tarefas, sendo um dos mais sagazes o pequeno Pólio, cujos
méritos eram dignos do louvor dos seus. Entre a numerosa população da cidade de
Roma não era difícil passar desapercebido , e assim as provisões não
escasseavam. Contudo, havia vezes em que correrias terminavam abrupta e
fatalmente, e não voltavam a ver os ousados aventureiros.
Quanto a água, contavam com
abundante provisão no extremo inferior dos corredores. Ali contavam com poços e
fontes de aprovisionamento suficientes para todas suas necessidades.
Era também na noite que se
realizavam certas expedições, as mais tristes de todas. Essas consistiam na
busca dos corpos daqueles que tinham sido despedaçados pelas feras selvagens ou
queimados nas piras. Estes despojos bem-amados eram resgatados a custo dos
maiores perigos, e transportados rodeados de milhares de riscos. Em seguida os
parentes e amigos dos mortos celebravam os simples serviços fúnebres como
também a festa na qual os sepultavam. Depois de tudo isso costumavam depositar
os restos em sua estreitíssima tumba, cobrindo-a com a correspondente pedra,
onde se gravava o nome do defunto.
Aqueles primitivos cristãos,
vivamente inspirados pela gloriosa doutrina da ressurreição, olhavam para o
futuro com a mais ardorosa esperança da chegada do momento em que a corrupção
haveria de ser absorvida pela incorrupção, e o mortal pela imortalidade. E era
assim que eles não queiram permitir que o corpo deles, ao que tão sublime
destino aguardava, fosse reduzido a cinzas, chegando até a pensar que ainda as
sagradas chamas funerárias eram uma honra para o corpo que era o templo de Deus
e tanto favor tinha merecido das alturas celestiais. Era em tal virtude que se
procurava trazer os estimados corpos dos mortos até lá, fora da vista dos
homens, onde nenhuma mão irreverente perturbasse a solene quietude do último
lugar de repouso, onde haviam de jazer "até a trombeta final" [39], que seria a vos do chamado
que a primitiva Igreja esperava com vivo anelo como o mais iminente e real.
Acima, na cidade onde se respirava, a cristandade tinha ido aumentando nas
gerações sucessivas, e durante todo o tempo assim transcorrido, os mortos
haviam ingressado ali em proporções cada vez maiores, de forma tal que agora as
catacumbas constituíam uma vasta cidade de mortos, cujos silenciosos moradores
dormitavam em filas inúmeras, fileira após fileira, esperando até que se
ouvisse a aclamação do Senhor, chamando a congregar-se o povo lavado com seu
sangue, "num momento, num abrir e fechar de olhos" [40], a encontrar o Senhor no ar.
Em muitos lugares tinham
derrubado as arcadas a fim de elevar o teto para formar habitações. Nenhum
deles era demasiado espaçoso, senão que eram somente recintos de maior expansão
onde os fugitivos podiam reunir-se em assembléias maiores, podendo ao mesmo
tempo respirar com desopressão. Ali passavam eles a maior parte do tempo, e
também realizavam suas assembléias de fraterna comunhão.
Sua situação se explica pela
natureza dos tempos em que vivera. Pois as simples virtudes da república eram
agora história, e a liberdade tinha fugido para sempre do território. A
corrupção tinha se apossado do império, e o havia avassalado tudo sob sua mortal
influência. Conspirações, rebeliões, traições, acoitavam sucessivamente o
estado. Mas o povo, vítima de todo, permanecia na distância, em silêncio. Eles
viam sofrer os valentes dos seus, e viam morrer os mais nobres, sem sequer se
comover. Nada tinha a virtude de estar no coração generoso nem fazer arder a
alma. Seus sentimentos gerados somente podiam mover-se entre as mais baixas
paixões.
Contudo, contra um semelhante
estado de coisas fez impacto valentemente a verdade de Jesus Cristo, e contra
inimigos tão enormes como esses deveu lutar e abrir-se passo corpo a corpo por
entre tais obstáculos, realizando um avanço lento, porém firme. Aqueles que
tomavam as armas sob sua bandeira, não podiam esperar um futuro fácil e cômodo.
O som da trombeta não era de incerteza. O conflito era severo e compreendia o
nome, a fama, a fortuna, amigos e a vida; tudo aquilo que é tão querido para o
ser humano. Assim o tempo seguia sua marcha. Se bem era verdade que os
seguidores da verdade aumentavam em número, também o vício intensificava seu
poder maligno; o povo ia afundando dia após dia na mais profunda corrupção, e o
estado era arrastado aceleradamente à ruína mais segura.
Foi então quando se
levantaram aquelas terríveis perseguições que tinham por objeto extirpar da terra
os últimos vestígios do cristianismo. A terrível provação esperava o cristão se
resistia o decreto da autoridade imperial. Aos que seguiam inexoravelmente a
ordem da verdade, uma vez tomada a decisão, era final e irrevogável. Às vezes
costumava acontecer que tomar a decisão de tornar-se cristão equivalia a
aceitar uma morte instantânea, ou pelo menos a ser expulso fora da cidade,
proscrito dos gozes normais do lar e da luz do dia.
Os corações dos romanos foram
endurecidos, e seus olhos foram cegados. Não podiam comover seus sentimentos
nem despertar neles a menor compaixão, nem a inocência nem a infância, nem a
pureza da mulher, nem a nobre coragem de bem, nem os veneráveis cabelos brancos
do ancião, nem a inconfundível fé, nem o amor vitorioso sobre a morte. Não
tinham olhos para ver a tempo a negra nuvem de desolação que pendia sobre o
império, condenado irrevogavelmente a morte pelos atos dos seus. Não tiveram
visão para compreender que do furor daquele destino somente poderiam ser salvos
por aqueles a quem perseguiam.
Porém, na plena vigência
desse reino de terror, as catacumbas abriram suas portas perante os cristãos,
qual uma cidade de refúgio. Ali repousavam os ossos de seus antecessores, que
de geração em geração tinham lutado pela verdade, e o pó de seus corpos
esperava aqui a aclamação da ressurreição. Ali traziam eles a seus amados
parentes, conforme um a um iam deixando-os para voar às alturas. Até aqui o
filho tinha trazido em ombros o corpo de sua velha mãe, e o progenitor tinha
visto seu filho depositado no sepulcro. Até aqui eles tinham trazido
piedosamente os mutilados despojos de aqueles que pela sua fé haviam sido
despedaçados pelas feras selvagens na arena, os corpos chamuscados daqueles que
tinham sido entregues às chamas, ou ainda os consumidos corpos dos mais
infelizes de todos, que tinham exalado o último suspiro de sua vida após a
larga agonia que constituía a morte por crucifixão. Cada um dos cristãos tinha
algum amigo ou parente cujo corpo jazia ali. O mesmo campo era em todo sentido
um campo santo.
Nada, pois, podia estranhar
que eles procurassem refúgio e segurança num lugar semelhante.
Nestas moradas subterrâneas,
sobre tudo, havia encontrado seu único lugar de refúgio contra a inflamada
perseguição. Naquele tempo não podiam procurar auxílio em países estrangeiros,
ou além dos mares, porque para eles não existiam países de refúgio, e não havia
terra do outro lado dos mares na qual tivessem a menor esperança. O poder
imperial de Roma mantinha colhido em suas poderosas garras todo o mundo
civilizado; seu tremendo sistema policial se estendia por todas as terras, e
ninguém podia escapar de sua implacável ira. Seu poder era tão irresistível que
desde o nobre mais elevado até o escravo mais humilde, todos eram igualmente
súbditos de Roma. Nenhum imperador destronado poderia fugir de sua vingança,
nem sequer se podia esperar semelhante escape. Quando Nero caiu, o único que
alcançou a fazer foi ir numa vila perto e suicidar-se. Porém, aqui embaixo,
nesses infinitos labirintos, ainda o poder de Roma não tinha valor algum, pois
seus burlados emissários vacilavam na mesma entrada.
Nestes providenciais refúgios
os cristãos permaneciam, povoando densamente as inumeráveis passagens e grutas.
De dia se reuniam para trocar entre eles o verbo de consolação e alento, ou
também para partilhar condolência por um novo mártir. Pelas noites despediam os
mais ousados dentre eles em desesperadas empresas para trazer notícias do mundo
exterior, ou bem para trazer os corpos ensangüentados das novas vítimas. No
transcurso de diferentes perseguições, eles se retiraram ali embaixo numa
segurança tal que, embora milhões pereceram por todo o vasto império, o genuíno
poder do cristianismo em Roma apenas foi sacudido.
Deste modo foi coberta sua
segurança e preservada sua vida, mas, sob que condições? Por ventura, o que é a
vida sem luz, e a segurança do corpo naquelas úmidas trevas que deprimem a
alma? A natureza física do homem estremece diante de tal destino, e seu
delicadíssimo organismo não demora em perceber a falta daquele sutil princípio
renovador que tão estreitamente vinculado está com a luz. As funções do corpo
vão perdendo uma a uma suas faculdades e aquele tom normal de energia. Esse
enfraquecimento do corpo afeta a mente, predispõe à tristeza, à apreensão, a
dúvida e até ao desespero. Não deixa de ser uma honra maior para o homem
manter-se firme e fiel sob tais circunstâncias, do que oferecer sua vida em
heróica morte na arena, ou ter morrido ardendo resolutamente na pira. Ali, onde
as mais densas sombras das trevas envolviam em amortalhando os cativos, foi
onde estes enfrentaram com valor supremo a mais dura das provas. A valente
presença de ânimo sob a perseguição mesma era o mais admirável; mas se tornou
tanto mais sublime o fato de tê-la resistido, a despeito de seus horrores
indescritíveis.
As rajadas de ar gélido que
sempre recorriam este labirinto gelavam até os ossos, mais traziam o ar
renovado da superfície. Tanto os pisos como as muralhas e os tetos, estavam
cobertos de depósitos imundos de vapores úmidos que sempre circulavam, pois a
atmosfera estava espessa pelas exalações impuras e miasmas contaminantes. A
densa fumaça das tochas sempre acedas poderia ter mitigado os ares nocivos, mas
oprimia os moradores com sua moral influência, que além de cegar, sufocava.
Contudo, em meio deste acúmulo de horrores, a alma do mártir se manteve firme e
impassível sem render-se. O revivido espírito que resistiu todo isso se ergueu
a proporções que nunca foram alcançadas nem nos mais orgulhosos dias da velha
república. Aqui foi sobrepujada a fortaleza de Régulo, a devoção de Curtio, a
constância de Bruto, e não por homens adultos e fortes somente, senão por
tenras virgens e fracas crianças.
Assim, desprezando o
render-se diante o mais cruel dos poderes de perseguição, se mantiveram firmes
e sem flutuar na pureza do coração, no bem, no valor e na nobreza. Para eles a
morte não tinha terrores, nem também não a apavorante morte em vida a que se
viram obrigados e que preferiram suportar ali naquelas regiões do desmaio entre
os mortos. Eles sabiam o que lhes esperava quando se decidiam a seguir a Jesus
Cristo, e o aceitavam todo com prazer. Desciam ali voluntariamente, levando com
eles todo o que era mais precioso a alma do homem, e tudo sofriam pelo grande
amor com que tinham sido e eram amados.
O constante esforço que eles
faziam por diminuir a intensidade das trevas de sua moradia ficou vivível todo
em volta das muralhas. Em alguns lugares, essas estavam cobertas de estuque
branco, e em outras, adornadas com quadros; mas de nenhuma forma com mortais
deificados para serem adorados, idolátricamente, senão simplesmente monumentos
de lembrança daqueles grandes heróis antigos da verdade, "os quais por
meio da fé venceram reinos, praticaram a justiça, alcançaram promessas, fecharam
a boca dos leões, apagaram a força do fogo, escaparam ao fio da espada, da
fraqueza tiraram forças, tornaram-se poderosos na guerra, puseram em fuga
exércitos estrangeiros" (Hebreus 11:33-34). Se nessas horas de angústia e
amargura necessitavam buscar cenas ou pensamentos que pudessem aliviá-lhes suas
almas e inspirá-los com novas forças para o futuro, pois não podiam eles ter
achado outros objetos mais acertados em que inspirar-se, de tanto valor e de
tão profundo consolo.
Tais eram os ornamentos das capelas.
Pois os únicos moveis que continham eram uma simples mesa de madeira, sobre a
qual colocavam o pão e o vinho da Ceia do Senhor, os símbolos do corpo e do
sangue de seu Senhor crucificado.
A cristandade levava longo
tempo de luta, e essa era uma luta contra a corrupção. Por conseguinte, não
deve considerar-se estranho se a igreja contraiu alguns sinais de seu contato
demasiado estrito com seu inimigo, ou se ela levou aqueles sinais até seu lugar
de refúgio. Todavia, se eles praticavam algumas variações com relação ao modelo
apostólico, estes eram muito triviais, e todas podiam passar desapercebidas, se
não fosse porque elas abriram o passo para outras maiores. Com isso tudo, as
doutrinas essenciais do cristianismo não sofreram a menor contaminação, nem
mudança alguma. O pecado do homem, a misericórdia do Pai, a expiação do Filho,
a unção do Espírito Santo, a salvação pela fé no Redentor, o valor de seu
precioso sangue, sua ressurreição física, a bem-aventurada esperança de seu
regresso: todas essas verdades fundamentais eram para eles de tanta estima e as
guardavam com tanto fervor e energia, que não alcança a mera linguagem a fazer
tributo da devida justiça.
Deles era aquela excelsa fé
que os susteve frente as provas mais duras. No homem Cristo Jesus, glorificado
à direita de Deus, era em quem repousava sua fé e sua esperança, em mais nada
ou mais ninguém. A fé nEle era tudo. Era o mesmo hálito de vida, a respiração
normal deles, tão real que os sustentou na hora dos cruéis sacrifícios, tão
duradoura que ainda quando parecia que todos os seguidores haviam desaparecido
da terra, eles, contudo, podiam olhar para as alturas e esperar nEle.
Deles era a plenitude daquele
amor que definiu Cristo quando estava na terra, dizendo que era o resumo da lei
e dos profetas. Era desconhecida naqueles dias a luta sectária e as amarguras
denominacionais. É que eles tinham um grande inimigo geral contra quem lutar, e
como poderiam pelejar uns contra os outros? Ali se cultivava o amor pelo
próximo, que não conhecia distinção de raça ou classe, senão que abraçava toda
a imensa circunferência, de maneira tal que um podia dar a vida por seu irmão.
Ali, pois, o amor de Deus, derramado abundantemente no coração pelo Espírito
Santo, não temia chegar até o sacrifício da mesma vida. A perseguição, que os
rodeava como um leão rugindo, os fortaleceu mas seu zelo, fé e amor que
alumbravam brilhantemente em meio das trevas da idade. Seu número se contava
aos que eram verdadeiros e sinceros. Era o melhor antídoto contra a hipocrisia.
Ao valente o investia do mais ousado heroísmo, e ao temeroso inspirava-lhe cruz
valor e devoção. Eles viveram numa época na qual ser cristão era arriscar a
vida mesma. Eles não retrocediam nem vacilavam, senão que atrevidamente
proclamavam sua fé e aceitavam as conseqüências. Eles traçavam uma linha
divisória perfeitamente visível entre eles e o mundo, e se mantinham valentemente
em seu posto. A simples pronunciação de umas quantas palavras, a execução de um
ato singelo, bastaria para salvar da morte; mais a língua se negava a
pronunciar a fórmula da idolatria, e a mão firme recusava o derramamento da
libação. As doutrinas vitais do cristianismo encontravam neles muito mais que o
mero assentimento intelectual. Cristo mesmo não era para eles somente uma
idéia, um pensamento, senão uma existência pessoal e real. A vida de Cristo
sobre a terra era para eles uma verdade vivificante. Eles a aceitavam como o
mais adequado exemplo para todo homem. Sua ternura, sua humilde, sua paciência
e sua mansidão, pensavam eles que lhes eram oferecidas para que fosse imitadas;
jamais separaram o cristianismo ideal do cristianismo real. Pensavam que a fé
do homem consistia tanto em sua vida como em seu sentimento, e não haviam
aprendido a fazer distinção entre o cristianismo experimental e o cristianismo
prático. Para eles a morte de Cristo era o grande evento, perante o qual todos
os outros eventos na vida dEle eram somente secundários. Que Ele morreu é o
fato por excelência, e que foi pelos filhos dos homens, ninguém em absoluto podia
compreendê-lo melhor que eles. Que Ele foi levantado e que está glorificado à
direita de Deus, e que toda potestade foi-Lhe entregue no céu e na terra, era
divina realidade para eles. Pois entre seus próprios irmãos sabiam de muitos
que tinham sido pendurados de uma cruz por amor a seus irmãos, ou morrido na
pira por seu Deus. eles tomavam sua cruz e seguiam a Cristo, levando seu
vitupério. Aquela cruz e aquele vitupério não eram somente figurados. De tudo
isso testemunham esses tenebrosos labirintos, recinto próprio para os mortos
somente, que porém por muitos anos se abriu para refugiar os viventes. É
testemunhado por aqueles nomes de mártires, por aquelas palavras de triunfo. As
muralhas conservam para as gerações vindouras as palavras de dor e de lamento,
e de sentimentos sempre variados que se escreveram sobre elas durante as
sucessivas gerações por aqueles que deveram albergar-se nessas catacumbas. Elas
transmitem sua dolorosa história aos tempos vindouros, e trazem à imaginação as
formas, os sentimentos e os feitos daqueles que foram ali confinados. Assim
como a forma física da vida se fixa nas placas da câmara fotográfica, assim as
grandes vozes que uma vez se arrancaram pela intensidade do sofrimento desde o
fundo da alma mesma do mártir ficaram estampadas sobre a muralha, desafiando os
séculos vindouros.
Testemunhas humildes da
verdade, pobres, depreciados, abandonados, cujos clamores por misericórdia
chegavam em vão a ouvidos dos homens: antes se sufocavam no sangue dos mortos e
na fumaça dos sacrifícios! Porém, se os de sua própria raça responderam a suas
súplicas com renovadas e maiores torturas, estas muralhas rochosas mostraram
maior misericórdia, pois ouviram seus suspiros e os guardaram em seu seio, e
foi assim que aqueles clamores de sofrimento viveram ali entesourados e
gravados na rocha para sempre.
A conversão de Marcelo ao
cristianismo tinha sido repentina. Porém, tais transições do erro a verdade
eram freqüentes. Ele tinha testado e provado as mais elevadas formas da
superstição selvagem da filosofia pagã, tendo descoberto que não o satisfaziam;
mas de repente se achou de frente ao cristianismo, comprovou que enchia
plenamente todos os anelos de sua consciência. Possuía precisamente o que se
necessitava para poder contentar as ânsias da alma e saciar o vazio do coração
com a plenitude da paz. E é assim que se a transição foi rápida, também foi
completa e perfeita. Pois, tendo aberto os olhos e contemplado o Sol de
Justiça, ele não podia voltar a fechá-los. A obra da regeneração era completada
divinamente e recebeu de boa vontade a parte que lhe correspondia no sofrimento
dos perseguidos.
As primeiras predicações do
Evangelho se caracterizavam pela freqüência de conversão notáveis como esta.
Por todo o mundo pagão eram incontáveis as almas que experimentavam o que
experimentou Marcelo, e que gostosos se submetiam às mesmas experiências. Pois
só era necessária a predicação da verdade, acompanhada pelos poder do Espírito
Santo, que lhes abria os olhos e os conduzia a ver a luz. Eis aqui a causa e a
clave da rápida disseminação do cristianismo, a influência divina real sobre a
razão humana.
Marcelo, pois, vivendo a vida
e partilhando a atividade e a comunhão com seus irmãos, não demorou em penetrar
no fundo de suas esperanças, seus temores e suas alegrias. A fé viva e a
confiança inquebrantável deles se comunicavam a seu coração, e todas as
gloriosas expectativas que os sustentavam não demoraram em chegar a ser o mais
efetivo recreio de sua própria alma. A bendita Palavra de vida chegou a ser
matéria de seu constante estudo e deleite e todos seus ensinos acharam nele seu
mais ardoroso e ativo discípulo.
As reuniões mais freqüentes
por todas as catacumbas eram as de oração e louvor. Tendo sido
providencialmente afastados das ocupações comuns dos negócios do mundo,
dedicavam-se por inteiro aos mais elevados e sublimes objetivos em que
colocavam todo seu empenho. Privados aqui como estavam da oportunidade de
realizar algum esforço pelo sustentamento do corpo, viam-se constrangidos a
dedicar sua vida integramente ao cuidado da alma. E eles conseguiam amplamente o
que procuravam. Pois a terra, com seus cuidados fervorosos e suas atrações e
seus milhares de distrações, tinham perdido sobre eles todo influxo,
deixando-os livres. Os céus tinham se aproximado deles; seus pensamentos e sua
linguagem eram justamente os do Reino. Eles se compraziam em falar e pensar no
gozo incomensurável e digno que aguardava aos que fossem fiéis até a morte.
Deleitavam-se em conversar e discorrer sobre aqueles irmãos que já haviam
partido, e que somente levavam vantagem. Não imaginavam sequer que tivessem se
perdido. Tudo isso lhes fazia prever o momento em que sua própria partida
também chegaria. Mas, por sobre todas as coisas, eles olhavam maiormente para
aquele dia do grande chamamento final, que levantaria os mortos, transformaria
os vivos e traria em volta dEle os comprados com sangue, o povo lavado com seu
sangue, até esse lugar de encontro no ar; e esperavam o estabelecimento do
tribunal de Cristo, onde Ele outorgará recompensas pelo serviço fiel (1
Tessalonicenses 4:13-18; 3:20-21; 1 Coríntios 3).
Foi assim como Marcelo viu
estes lúgubres passadiços subterrâneos, não entregues para o silêncio do sono
dos mortos, senão densamente povoados de milhares de vivos. Descoloridos,
pálidos e oprimidos, achavam ainda em meio dessas trevas um destino melhor que
o que podiam esperar na superfície. Sua atividade vital animava esta região dos
mortos; o silêncio desses corredores era interrompido pelo som das vozes
humanas. A luz da verdade, a virtude, espantada dos ares saudáveis de cima,
florescia e se acendia com o mais puro e reluzente brilho em meio destas trevas
subterrâneas. As doces saudações de afeto, de amizade, de fraternidade e de
amor, eram cultivadas entre os desmoronantes restos dos que tinham partido.
Aqui se misturavam as lágrimas de luto com o sangue dos mártires, e as mãos
carinhosas envolviam em seus últimos sudários os pálidos despojos. Nestas
grutas, as almas heróicas se erguiam por acima da dor. A esperança e a fé sorriam
gozosas, e anunciavam com firmeza "a brilhante estrela da manhã", e
dos lábios de quem deviam brotar lamentos, surgiam vozes de louvor.
CAPÍTULO 9
A PERSEGUIÇÃO
Porque necessitais de
paciência, para que, depois de haverdes feito a vontade de Deus, possais
alcançar a promessa. [41]
A perseguição agravou-se com
maior fúria. Não haviam transcorrido senão umas poucas semanas desde que
Marcelo vivia ali, quando um maior número tinha acudido em desesperada busca
deste refúgio de retiro. Jamais no passado tinham-se congregado tantos nas
catacumbas. Geralmente as autoridades se haviam contentado com os cristãos mais
proeminentes e, em conseqüência, os fugitivos que recorriam às catacumbas
compunham esta classe. Foi em verdade a perseguição mais severa que sobreveio
esta vez, abrangendo a todos, e somente sob o governo de uns poucos imperadores
havia-se mostrado tal encarniçamento indiscriminado. Esta vez não se fazia a
menor distinção de classe ou posição. Pois tanto o mais humilde seguidor como o
mais eminente dos mestres foram perseguidos a morte com a mais encarniçada
fúria.
Até esta época a comunicação
com a cidade era relativamente fácil para os refugiados, porque os cristãos que
tinham ficado acima, embora pobres de médios, não descuidavam os que estavam nas
profundezas do esconderijo, nem esqueciam suas necessidades. Facilmente, pois,
podiam se adquirir provisões, e o auxílio não faltava. Porém chegou a hora em
que precisamente aqueles em cujo auxílio confiavam os fugitivos, também foram
vítimas da perseguição e obrigados a compartir seu destino com seus irmãos de
grutas e precisar eles mesmos receber caridade em vez de dá-la.
Contudo, não afrontavam sua
situação desesperando-se. Ainda nessa Roma havia muitos que os amavam e
ajudavam, embora não fossem cristãos. Em todo grande movimento, sempre haverá
uma considerável proporção de seres neutrais, os mesmos que, seja por interesse
ou por indiferença, se mantêm à margem. Essas pessoas invariavelmente se unirão
ao lado mais forte, e quando o perigo ameace, costumam evitá-lo fazendo
qualquer concessão. Tal, pois, era a condição em que se encontravam numerosos
romanos. Eles tinham amigos e parentes a quem amavam entre os cristãos e por
quem sentiam a mais cordial simpatia. Sempre se mantinham dispostos a ajudá-los,
mas naturalmente, tinham a devida consideração pela própria segurança para não
chegar ao extremo de jogar sua sorte junto com a deles. Seguiam sendo cumpridos
assistentes aos templos e à adoração dos deuses pagãos como antes, vindo assim
a ser aderentes nominais das velhas superstições oficiais. Estes foram os que
proveram para as necessidades da vida dos cristãos.
Porém agora, além disso, toda
expedição que se tentasse fazer à cidade estava rodeada de maiores e iminentes
perigos, e somente os muito ousados se atreviam a aventurar-se. Mas esse
profundamente arraigado desdém pelo perigo e a morte era tal, e tantos eram os
que por ele estavam inspirados, que jamais deixaram de oferecer-se
espontaneamente os homens para desafiar a morte em tão perigosas empresas.
Eis ali as tarefas peculiares
para as que Marcelo se oferecia entusiasta e gostoso de poder fazer algo por
seus irmãos. A mesma valentia e perspicácia que o tinha elevado até as mesmas
altas categorias militares, agora o faziam destacar-se com todo êxito nestas
suas novas atividades.
Dezenas de fiéis eram
capturados e sacrificados por dia. Os cristãos se encarregavam da igualmente
arriscada tarefa de recuperar seus despojos mortais para dá-lhes sepultura de
seu jeito. Nisto não havia tanto perigo, já que evitavam às autoridades o
incômodo de queimá-los e enterrar os cadáveres.
Um dia chegaram notícias à
comunidade residente sob a Via Ápia de que dois dos seus tinham sido capturados
e entregados à morte. Marcelo, juntamente com outros, saíram com a missão de
recuperar os corpos. Pólio, aquele rapaz com coração de adulto, foi com eles se
por acaso fossem necessários seus serviços. Era o anoitecer quando chegaram à
porta da cidade, e as trevas não demoraram em cobrir seus movimentos. Mas não
tardou em aparecer a lua para iluminar o amplo cenário.
Escoaram-se abrindo-se passo
pelas ruas tenebrosas, até chegar finalmente ao Coliseu, o lugar de martírio de
tantos de seus companheiros. Aquela enorme massa se elevava orgulhosa diante
deles, ampla, tenebrosa e severa, como o poder imperial que a tinha construído.
Multidões de vigilantes, guardiões e gladiadores estavam dentro de suas portas,
cujas passagens abobadadas estavam iluminadas pelo resplendor das tochas.
Os gladiadores conheciam o
motivo de sua presença, e lhes ordenaram rudemente segui-los. Eles mesmos os
conduziram até que estiveram na arena. Ali estavam jogados numerosos corpos, os
últimos que tinham morrido naquele dia. Estavam cruelmente mutilados, alguns em
condições tais que apensa se distinguia que eram seres humanos. Depois de uma
longa busca, acharam os dois que procuravam. Esses corpos foram seguidamente
colocados em grandes sacos, nos quais se dispunham a levá-los.
Marcelo se deteve para
contemplar o cenário que o rodeava. Estava completamente rodeado de maciças
muralhas que se elevavam por meio de numerosos terraços em declive, até chegar
ao coroamento no círculo exterior. Sua estrutura preta parecia encerrá-lo com
barreiras tais que ele já não podia franquear.
Ele pensava: "Quando
chegará também o dia em que eu, da mesma maneira, ocupe meu posto aqui,
oferecendo minha vida por meu Salvador? Serei fiel quando chegue esse momento?
Oh, Senhor Jesus, sustenta-me naquela hora!"
Ainda a lua não tinha
ascendido o suficiente para que penetrassem seus raios dentro da arena. Ali
nesse interior tudo era escuro e repulsivo. A busca deveu realizar-se com
tochas emprestadas pelos guardiões.
Naqueles momentos Marcelo
ouviu uma voz profunda procedente de alguns dos arcos posteriores. Seus tons
penetraram dentro do ar da noite com claridade surpreendente, e puderam ser
ouvidos por cima da rude algaravia dos guardas:
"E ouvi uma grande voz
no céu, que dizia: Agora é chegada a salvação, e a força, e o reino do nosso
Deus, e o poder do seu Cristo; porque já o acusador de nossos irmãos é
derrubado, o qual diante do nosso Deus os acusava de dia e de noite. E eles o
venceram pelo sangue do Cordeiro e pela palavra do seu testemunho; e não amaram
as suas vidas até à morte" [42].
— Quem é esse? — disse
Marcelo.
— Não o atendas — disse seu
companheiro— . É o irmão Cina. Suas penas e dores o deixaram maluco. Seu único
filho foi queimado na pira a começos da perseguição, e desde então ele anda
recorrendo a cidade anunciando calamidades por vir. Até agora não tinham se
ocupado dele; porém finalmente o capturaram.
— E está prisioneiro aqui?
— Sim.
E de novo a voz de Cina se
deixou ouvir, espantosa, ameaçadora e terrível:
"Até quando, oh verdadeiro
e santo Dominador, não julgas e vingas o nosso sangue dos que habitam sobre a
terra?" [43].
— Esse é, então, o homem que
eu ouvi no capitólio!
— Sim, deve ser ele, porque
já recorreu toda a cidade, e ainda o palácio, clamando e apregoando isso mesmo.
— Vamos.
Tomaram seus sacos e se
encaminharam às portas. Depois de uma breve pausa, foi-lhes permitido passar. E
conforme saiam, ouviram a voz de Cina na distância:
"E clamou fortemente com
grande voz, dizendo: Caiu, caiu a grande Babilônia, e se tornou morada de
demônios, e covil de todo espírito imundo, e esconderijo de toda ave imunda e
odiosa. Sai dela, povo meu!" [44]
Nenhum deles pronunciou
palavra alguma ate que chegaram a suficiente distância do Coliseu.
Marcelo rompeu o silêncio.
— Senti um grande temor de
que nos encerrassem e não nos deixassem sair mais de lá.
O outro lhe respondeu:
— Não sem razão sentiste
aquele temor. O menor capricho repentino do guarda poderia ser a nossa sentença
de morte inevitável. Mas para isso devemos estar sempre preparados. Pois em
momentos como este, devemos estar dispostos a afrontar a morte a qualquer
momento. Que diz o nosso Senhor? "Estai vós também prontos e
apercebidos" [45]. Quando o tempo chegue,
devemos estar dispostos a dizer: "Pronto estou para ser oferecido".
-Sim — disse Marcelo— , nosso
Senhor já nos disse o que deveríamos ter: "no mundo tereis aflições..."
[46].
— Ah, mas Ele também diz:
"mas tende bom ânimo, eu venci o mundo" [47]. "Onde eu estou, vós
também estareis" [48].
— Por meio dEle — disse
Marcelo— , podemos sair mais que vencedores sobre a morte [49]. As aflições deste tempo
presente não são dignas de comparar-se com a glória que nos será revelada [50].
Assim se consolavam eles com
as promessas seguras da bendita Palavra de vida que em todos os tempos e em
todas as circunstâncias é capaz de brindar semelhante consolo celestial.
Finalmente chegaram a seu destino, sãos e salvos e portando suas cargas, com a
íntima gratidão em seus corações para Aquele que os tinha preservado.
Não muitos dias depois,
Marcelo voltou sair em busca de provisões. Esta vez ele foi sozinho. Foi à casa
de um homem que era muito amigo deles e que tinha sido de grande ajuda. Estava
por fora das muralhas, nas redondezas da Via Ápia.
Depois de ter obtido as
provisões indispensáveis, começou a averiguar pelas notícias.
— Más são para vocês as
notícias — disse o homem— . Um dos oficiais dos pontos se converteu ao
cristianismo recentemente, e isso enfureceu o imperador. Este designou um outro
oficial para o cargo que o outro tinha, e o comissionou para perseguir os
cristãos. E é assim que a cada dia capturam alguns deles. Pois nestes dias não
existe um único homem que seja considerado demasiado pobre para não capturá-lo.
— Ah, sabe você o nome do
novo oficial dos pretorianos que está encarregado de perseguir os cristãos?
— Lúculo.
— Lúculo! — exclamou Marcelo—
. Que estranho!
— Dizem que é um homem de
muita habilidade e energia.
— Tenho ouvido falar dele. E
em verdade estas são más notícias para os cristãos.
— A conversão ao cristianismo
do outro oficial enfureceu o imperador até enlouquecê-lo. A tal extremo que se
oferece um considerável resgate por ele. E se você, amigo, por ventura o vê ou
estás em condições de falar com ele, procura por todos os médios comunicá-lo.
dizem todos que ele está nas catacumbas com vocês.
— Ele deve estar ali, já que
não existe outro lugar seguro.
— Verdadeiramente, estes são
tempos terríveis. Deves tomar todas as precauções possíveis.
Marcelo respondeu, humilde,
mas firmemente:
— Não podem matar-me mais de
uma vez.
— Oh, vocês os cristãos desperdiçam
a fortaleza mais excelente. Eu admiro com toda a minha alma seu valor, mas
penso que vocês poderiam se conformar exteriormente ao decreto do imperador.
Por que, pois, deviam precipitar-se assim tão loucamente à morte?
— Nosso Redentor morreu por
nós. E de nossa parte, não podemos menos que estar prontos a morrer por Ele. E,
já que Ele morreu pelo seu povo, nós também nos comprazemos voluntariamente em
imitá-lo, oferecendo nossas vidas por nossos irmãos.
— Vocês são pessoas
divinamente maravilhosas –exclamou aquele homem ao tempo que alçava as mãos.
Chegou o momento em que Marcelo
deveu despedir-se, e então partiu levando sua carga. As notícias tinham sido
tais que o haviam enchido e tinham comovido sua mente e todo seu ser.
"Então Lúculo ficou em
meu posto", pensava ele, em seu caminho. "Como desejaria saber se ele
se voltou contra mim! Pensará agora sobre mim como de seu amigo Marcelo, o
simplesmente como de um cristão? Pode ser que o descubra dentro de pouco, seria
verdadeiramente estranho que eu caísse em suas mãos; e, contudo, se eu fosse
capturado, provavelmente chegaria a estar perto dele".
"Mas ele deve cumprir
com seu dever de soldado, e por que deveria eu me queixar? Pois se ele foi
nomeado para esse cargo, não tem alternativa senão obedecer. E ele, como
soldado, não pode me tratar de outro modo senão como inimigo do estado. Ele bem
pode ter pena de mim, e ainda me amar em seu coração como amigo, mas contudo
não pode eximir-se de cumprir com seu dever".
"Já que se oferece um
resgate pela minha cabeça, eles devem redobrar seus esforços para dar comigo.
Acredito, pois, que meu tempo chegou. Devo estar preparado para enfrentar
fielmente o que venha".
Sumido nestes pensamentos
tinha recorrido a Via Ápia. Estava tão envolvido em suas meditações que não
percebeu uma multidão de pessoas reunidas numa esquina, até que esteve em meio
deles. E repentinamente se encontrou detido.
— Oh, amigo — exclamou uma
voz rude— , não tenhas tanta pressa. Quem é você, e para onde vai?
— Deixa o passo livre! — exclamou
Marcelo em tom de mando, natural em quem já teve o hábito de mandar e ter homens
sob suas ordens, indicando ao homem que se afastasse.
A multidão se surpreendeu
pelo modo autoritário e o tom imperioso, mas o porta-voz deles se mostrou mais
arrogante.
— Dize-nos quem é você, ou
não passas!
Ao que Marcelo replicou:
— Homem, afasta-te a um lado.
Não conheces que sou pretoriano?
Perante aquele homem tão
pavoroso como venerável, a multidão se abriu rapidamente, e Marcelo passo pelo
meio deles. Mas apenas tinha-se distanciado dali uns cinco passo, quando uma
voz exclamou:
— Prendam-no! É Marcelo, o
cristão!
A multidão também vociferou
ao uníssono. Mas Marcelo não esperou maior advertência. Jogando fora a carga
que levava, empreendeu vertiginosa fuga rumo o Tíber por uma rua lateral. A
multidão íntegra o perseguiu. Era uma carreira de vida ou morte. Mas Marcelo
tinha sido treinado em todo esporte atlético, e em segundos multiplicou a
distância que o separava de seus perseguidores. Finalmente chegou no Tíber, e
mergulhando nele nadou até o lado oposto.
Os perseguidores chegaram à
beira do rio, mas não passaram dali.
CAPÍTULO 10
A CAPTURA
Na capela, Honório se
encontrava sentado em companhia de um ou dois mais, entre quem estava a irmã
Cecília. Os mortiços raios de uma única lâmpada alumiavam o cenário muito
debilmente. Todos os presentes estavam silenciosos e tristes. Sobre eles pesava
uma melancolia mais profunda do comum. Em volta deles se ouvia o barulho de
passos e de vozes e um confuso murmúrio de atividade vital.
De forma repentina e rápida se
ouviram passos, e entrou Marcelo. Os ocupantes da capela saltaram sobre seus
pés com exclamações de gozo.
— Onde está Pólio? — perguntou
Cecília com vivo interesse.
— Eu não o vi — disse
Marcelo.
— Não o viu! — e ela voltou
cair sobre o assento.
— Mas, o que acontece? Já
devia ter voltado?
— Devia ter voltado seis
horas atrás, e isso me deixa louca de ansiedade.
— Não há perigo — disse
Marcelo, tentando consolá-la— . Ele sabe cuidar-se... — e procurou que não
percebessem sua preocupação, mas seu olhar traia suas palavras.
— Que não há perigo! — gritou
Cecília— Aí de mim, nós sabemos já todos os novos perigos que há. Jamais tem
sido tão perigoso como até agora.
— O que aconteceu para que
demorasses tanto, Marcelo? Te dávamos por morto.
Marcelo respondeu:
— Eu fui detido perto da Via
Ápia. Devi soltar a carga e correr ao rio. A turba me seguiu, mas eu mergulhei
nas águas e passei a nado. Dali tomei uma rota em envolvendo as ruas do outro
lado, depois do qual voltei cruzar e assim cheguei aqui são e salvo.
— Escapaste miraculosamente,
pois ofereceram resgate pela tua cabeça.
— Já sabiam vocês disso?
— Obviamente que sim, e muito
mais. Soubemos dos redobrados esforços que eles estão fazendo para
aniquilar-nos. Durante todo o dia têm estado chegando notícias de dor. Mais que
nunca devemos confiar-nos que somente Ele pode salvar-nos.
— Ainda podemos frustrar seus
planos — disse Marcelo com ar de esperança.
— Mas eles estão vigiando
nossa entrada principal — disse Honório.
— Então devemos fazer novas.
As fendas são inumeráveis.
— Eles estão oferecendo
recompensa por todos os irmãos proeminentes.
— E daí? Cuidaremos desses
irmãos, guardando-os mais que nunca.
— Nossos médios de
subsistência estão diminuindo gradualmente.
— Mas existem tantos ousados
e fiéis corações como sempre. Quem tem temor de arriscar sua vida agora? Nunca
faltará a provisão de alimento enquanto permaneçamos nas catacumbas. Pois se
nós conseguimos escapar à perseguição, traremos o auxílio aos nossos irmãos; e
se morremos, receberemos a coroa do martírio.
— Tens razão, Marcelo. Tua fé
dá vergonha aos meus temores. Como podem temer a morte aqueles que vivem nas
catacumbas? Se trata somente de umas trevas momentâneas e logo tudo passará.
Mas no dia de hoje ouvimos dizer muito que faz desesperar nossos corações e
afoga nossos espíritos até fazer-nos desmaiar.
— Aí de mim — continuou
Honório com voz dolorosa— , como se disseminou a gente, e as assembléias
ficaram desoladas. Não faz senão alguns meses que havia cinqüenta assembléias
cristãs dentro da cidade, onde brilhava a luz da verdade, e as vozes das
orações e dos louvores ascendiam até o trono do Altíssimo. Agora foram
abatidas, e o povo foi dispersado e lançado fora da vista dos homens.
Fez uma breve pausa, vencido
pela emoção, e depois, com sua voz baixa e amargurada, repetiu as palavras
afligidas do Salmo 80:
O Senhor Deus dos Exércitos,
até quando te indignarás contra a oração do teu povo?
Tu os sustentas com pão de lágrimas,
e lhes dás a beber lágrimas com abundância.
Tu nos pões em contendas com os nossos vizinhos,
e os nossos inimigos zombam de nós entre si.
Faze-nos voltar, oh Deus dos Exércitos,
e faze resplandecer o teu rosto,
e seremos salvos.
Trouxeste uma vinha do Egito;
lançaste fora os gentios, e a plantaste.
Preparaste-lhe lugar,
e fizeste com que ela deitasse raízes,
e encheu a terra.
Os montes foram cobertos da sua sombra,
e os seus ramos se fizeram como os formosos cedros.
Ela estendeu a sua ramagem até ao mar,
e os seus ramos até ao rio.
Por que quebraste então os seus valados,
de modo que todos os que passam por ela a vindimam?
O javali da selva a devasta,
e as feras do campo a devoram.
Oh! Deus dos Exércitos, volta-te,
nós te rogamos, atende dos céus,
e vê, e visita esta vide;
E a videira que a tua destra plantou,
e o sarmento que fortificaste para ti.
Está queimada pelo fogo, está cortada;
pereceu pela repreensão da tua face. [52]
— Tu estás triste, Honório — disse
Marcelo— . É verdade que nossos sofrimentos aumentam sobre nós; mas podemos ser
mais que vencedores por meio dAquele que nos amou. O que Ele disse? "Ao
que vencer, dar-lhe-ei a comer da árvore da vida, que está no meio do paraíso
de Deus" [53]. "Sê fiel até à morte,
e dar-te-ei a coroa da vida" [54]. "Ao que vencer darei a
comer do maná escondido, e dar-lhe-ei uma pedra branca, e na pedra um novo nome
escrito, o qual ninguém conhece senão aquele que o recebe" [55]. "E ao que vencer, e
guardar até ao fim as minhas obras, eu lhe darei poder sobre as nações... e
dar-lhe-ei a estrela da manhã" [56]. "O que vencer será
vestido de vestes brancas, e de maneira nenhuma riscarei o seu nome do livro da
vida; e confessarei o seu nome diante de meu Pai e diante dos seus anjos" [57]. "A quem vencer, eu o
farei coluna no templo do meu Deus, e dele nunca sairá; e escreverei sobre ele
o nome do meu Deus, e o nome da cidade do meu Deus, a nova Jerusalém, que desce
do céu, do meu Deus, e também o meu novo nome" [58]. "Ao que vencer lhe
concederei que se assente comigo no meu trono; assim como eu venci, e me
assentei com meu Pai no seu trono" [59].
Ao falar Marcelo estas
palavras, se ergueu e seus olhos brilharam, e seu rosto corou de entusiasmo.
Suas emoções foram transmitidas a seus companheiros, e conforme caiam estas
promessas uma a uma em seus ouvidos, eles esqueceram por um momento suas penas
e dores sob o pensamento de sua próxima bem-aventurança. A nova Jerusalém, as
ruas douradas, sem palmas de glória e os cantos do Cordeiro, o rosto dAquele
que está sentado no trono; tudo isso estava realmente presente em suas mentes.
Honório disse:
— Marcelo, tiras-te minha
tristeza com tuas palavras; sobreponhamo-nos, pois, a nossas dificuldades
terrenas. Vamos, irmãos, deixamos de lado nossas penas. Pois este irmão recém
nascido no reino mostra tal fé que nós devemos imitar. Olhemos, pois, o gozo
que nos foi proposto. "Porque sabemos que, se a nossa casa terrestre deste
tabernáculo se desfizer, temos de Deus um edifício, uma casa não feita por
mãos, eterna, nos céus" [60]
E continuou falando:
— A morte está muito perto, e
se aproxima cada vez mais. Nossos inimigos nos têm cercados, e o cerco é cada
vez mais estreito. Morreremos, pois, como cristãos.
Marcelo exclamou:
— Por que esses tristes
presságios? Acaso a morte está mais perto que antes? Não estamos seguros nas
catacumbas?
— Não soubeste, então?
— Saber quê?
— Da morte de Crispo!
— Crispo! Morto! Não! Como?
Quando?
— Os soldados do imperador
foram guiados pelas catacumbas por alguém que conhecia a rota. Penetraram no
salão onde estavam celebrando o serviço de adoração. Isso foi nas catacumbas
limítrofes ao Tíber. Os irmãos deram apressado alarme e fugiram. Mais o
venerável irmão Crispo, seja por causa de sua extrema velhice, ou pela
resolução de sofrer o martírio, não quis fugir dos inimigos. Limitou-se a
ajoelhar e elevar sua voz em oração a Deus. dois assistentes fiéis permaneceram
com ele. Os soldados se abalançaram sobre ele, e enquanto ainda permanecia
orando de joelhos, bateram nele até derramar seus miolos. Caiu morto no
primeiro golpe, e os dois irmãos renderam também sua vida ao seu lado.
— Eles voaram a unir-se
àquele exterior de mártires. Eles, pois, foram fiéis até a morte, e receberão a
coroa de vida — disse Marcelo com vivo entusiasmo.
Mas nesses instantes foram
interrompidos por um tumulto no exterior. Ao instante ficaram todos assustados.
— Os soldados! — exclamaram.
Mas não; não eram soldados.
Eram mais bem um cristão, um mensageiro desse hostil mundo externo. Pálido e
tremendo caiu no chão. Contorcendo-se clamou com seus últimos hálitos de vida.
A presença desse homem
produziu um efeito extraordinariamente aterrador sobre Cecília. Ela cambaleou,
caindo para trás contra a parede, tremendo desde os pés até a cabeça, travando
suas mãos uma contra a outra. Seus olhos pareciam sair-se de suas órbitas, os
lábios contraídos como se quisesse falar, mais não se ouvia o menor som.
— Fala! Fala, irmão!
Conta-nos tudo! — exclamou Honório.
— Pólio! — balbuciou o
mensageiro.
— O que aconteceu com ele — disse
veementemente Marcelo.
— Foi capturado. Está na
prisão!
Ouvindo isso, um grito agudo
de mortal amargura se difundiu pelas imediações, semeado o terror. Era o uivo
da irmã Cecília, quem não tardou em cair no chão.
Os que a seu lado estavam
acudiram a atendê-la. A levaram a seu quarto. Uma vez ali, lhe aplicaram os
habituais estimulantes até revivê-la. Mas o golpe a havia afetado gravemente, e
embora voltou em si, ficou em tal estado que parecia que sonhava.
Enquanto isso, o mensageiro
tinha recuperado as forças, e havia dito tudo quanto sabia.
Marcelo lhe perguntou:
— Pólio foi com você,
verdade?
— Não, ele estava sozinho.
— Para que tinha saído?
— Estava tentando ter
notícias, e já voltava. Caminhamos até que chegamos onde havia uma multidão de
homens. Para surpresa minha, Pólio foi detido e submetido a interrogatórios. Eu
já não ouvi o que aconteceu, mas alcancei a ver seus gestos de ameaça, e
finalmente vi que o prenderam. Nada pude fazer por ele. Mantive-me a uma
distância de segurança e observei. Como meia hora depois se apresentou uma
tropa de pretorianos. Pólio foi entregado a eles e o levaram.
— Pretorianos? — disse
Marcelo— . Reconheceu o capitão?
— Sim, era Lúculo.
— Está bem — disse Marcelo, e
ficou sumido em profunda meditação.
CAPÍTULO 11
A OFERENDA
Havia anoitecido no quartel
dos pretorianos. Lúculo se achava sentado ao lado de uma lâmpada que despedia
sua luz brilhante por toda parte. De pronto se levantou ao ouvir um toque na
porta. Prestamente abriu. Um homem entrou e avançou silenciosamente até o
centro do quarto. Depois, tirando da enorme capa na que vinha envolvido, ficou
descoberto na presença de Lúculo.
— Marcelo! — exclamou este cheio
de assombro, e pulando para a frente abraçou a seu visitante com visíveis
mostras de alegria.
— Querido amigo meu — disse ele—
, a que destino feliz devo eu a fortuna deste encontro? Me achava precisamente
pensando em você, e não me imaginava sequer que nos veríamos outra vez.
— Eu temo que nossos
encontros — disse Marcelo tristemente— não serão freqüentes de hoje em diante. Este
o procurei com grande risco de minha vida.
— Verdadeiramente é assim — disse
Lúculo, partilhando a tristeza do outro— . Você é perseguido com o mais irado
interesse, pois se oferece recompensa por você. Com isso tudo, aqui pode se
considerar seguro como o esteve sempre nos dias felizes, antes que fosses
possuído daquela loucura. Oh, meu querido Marcelo! Por que não podem voltar
aqueles dias?
— Não posso mudar minha
natureza nem desfazer o que fiz. Além disso, Lúculo, embora minha sorte possa
parecer-te dura, jamais tenho sido tão feliz como o sou atualmente.
— Feliz! — exclamou o outro
com profunda surpresa.
— A perseguição ordenada pelo
imperador não é coisa ligeira.
— Sim, isso o sei muito bem.
Eu vejo ante ela meus irmãos a cada dia. Dia após dia se estreita mais o cerco
que nos rodeia. A cada momento me despido de amigos a quem não volto mais ver.
Alguns companheiros sobem à cidade, mas não regressam senão seus despojos.
Voltam ali só para serem sepultados.
— E com tudo isso, você diz
que é feliz?
— Sim, Lúculo, tenho uma paz
que o mundo não conhece, uma paz que vem de cima e que sobrepuja todo
entendimento [63].
— Meu estimado Marcelo, me
consta que você é demasiado corajoso como para temer a morte; mas nunca pensei
que tivesses tal fortaleza para suportar com tão profunda calma tudo o que eu
sei que deves estar sofrendo atualmente. Ou bem teu valor é sobre-humano, ou é
o valor que dá a demência.
— Vem de cima, Lúculo. Jesus
Cristo, meu Senhor, é para mim muito mais que todas as riquezas e a honra do
mundo. Antes me era absolutamente impossível sentir assim, mas agora todas as
coisas velhas se passaram e eis aqui, todas foram feitas novas. Sustentado por
este novo poder, eu poderei suportar os piores males que possam sobrevir-me.
Não espero nada na terra senão sofrimento enquanto aqui viva. Eu sei que
morrerei na pior das agonias. Contudo, esse pensamento não é capaz de submeter
a indomável fé que mora dentro de mim.
— Me apena a alma — disse
Lúculo tristemente— , verte persuadido de tal determinação. Pois se eu visse o
menor signo de flutuação em você, teria a esperança de que o tempo mudaria ou
pelo menos modificaria teus sentimentos. Mas já me convenço de que estás tão
firme em teu novo caminho.
— Queira Deus conceder-me que
possa permanecer fiel até o fim! — disse Marcelo fervorosamente— . Mas a
verdade é que não vim para falar-te de meus sentimentos. Vim, querido Lúculo, a
pedir tua ajuda, tua comiseração e auxílio. Me prometes-te uma vez
demonstrar-me tua amizade, se a necessitasse. Agora venho pedir-te que cumprir
tua promessa.
— Tudo o que dependa de mim é
teu de antemão, Marcelo. Dize-me que queres.
— Você tem um prisioneiro.
— Sim, muitos.
— Este é um rapazinho.
— Eu creio que o pessoal sob
minhas ordens capturou um menino faz pouco tempo.
— Esta criatura é demasiado
insignificante para merecer captura. Ele está sob a ira do imperador, mas ainda
está debaixo de teu poder. Eu venho, Lúculo, a implorar-te pela sua liberdade.
— Aí de mim, querido Marcelo,
o que me pedes? Acaso esqueces-te da disciplina do exterior romano, ou do
juramento militar? Não sabes bem que se eu fizesse isso, violaria meu juramento
e me faria traidor? Se você me pedisse que deitasse minha espada, eu faria isso
mais facilmente que isto que estás me pedindo.
— Eu não esqueci do juramento
militar nem da disciplina da força, Lúculo. Eu pensava nesta criança, que é
apenas um menino, e bem poderia não ser considerado como prisioneiro. Acaso os mandados
do imperador compreendem as crianças?
— Ele não faz distinção de
idades. Não viste meninos tão pequenos como este sofrer a morte no Coliseu?
— Aí, sim o vi — disse
Marcelo, ao voltar seus pensamentos às jovens cujo cântico de morte o
impressionara, causando-lhe tanta pena e ao mesmo tempo tanta doçura em seu
coração— . Este rapazinho, então, também deve sofrer a morte?
— Sim — disse Lúculo— , salvo
que renuncie solenemente ao cristianismo.
— E isso ele jamais o fará.
— Então de imediato será aplicada
a sentença. É a lei a que o faz, e não eu, Marcelo. Eu sou só um instrumento.
Não me envergonhes, nem me imputes isso a mim.
— Eu não estou culpando-te.
Eu sei muito bem o severo que você é com a obediência. Se você desempenha seu
posto deve cumprir com seu dever. Porém, deixa-me fazer outra proposta. O
entregar prisioneiros não é permitido, mas a troca sim é legal.
— Sim.
— Se eu te falasse de um
prisioneiro muito mais importante que este moleque, o trocarias, não é verdade?
— Mas vocês não têm a nenhum dos nossos.
— Não, pero temos potestade
sobre todo nosso povo. E há alguns de nós por cujas cabeças o imperador tem
oferecido uma grande recompensa. Pois pela captura destes, centenas de rapazes
como este seriam gostosamente entregues.
— É então costume entre os
cristãos entregar-se uns aos outros? — perguntou Lúculo surpreso.
— Não, mas algumas vezes um
cristão oferecerá sua própria vida para salvar a de outro.
— Impossível!
— Tal é o caso neste exemplo.
— Quem é o que se oferece por
este rapaz?
— Eu, Marcelo!
Diante desta assombrosa
declaração Lúculo retrocedeu.
— Você! — exclamou.
— Sim, eu mesmo!
— Estás caçoando de mim. É
impossível.
— Falo com total seriedade. É
por isto que já expus a minha vida ao vir até aqui. Demonstrei o interesse que
tenho por ele ao me arriscar a tanto perigo. Já te explicarei. Este menino
Pólio é o último de uma antiga nobre família romana. É o único filho de sua
mãe. Seu pai morreu no campo de batalha. Ele pertence aos Servílio.
— Os Servílio! Então sua mãe é a senhora Cecília?
— Sim. Ela é uma das
refugiadas das catacumbas. Toda sua vida e seu amor não são senão este menino.
A cada dia ela deixa que ela saia à cidade numa perigosa aventura, mas em sua
ausência ela sofre indescritível agonia. Contudo, ela teme retê-lo sem sair
dali, por temor de que o ar úmido que é tão fatal para as crianças lhe origine
a morte. E assim ela o expõe ao que acredita ser um perigo menor.
"Esta é a criança que
você tem prisioneira. Essa mãe o sabe e agora jaz debatendo-se entre a vida e a
morte. Se você o sacrifica, ela também morrerá, e já não será mais um dos mais
nobres e puros espíritos de Roma.
"Pó esta razão é que eu
venho me oferecer em troca. O que sou eu? Estou sozinho no mundo. Nenhuma vida
está vinculada à minha. Não ha ninguém que dependa de mim para o presente ou o
futuro. Eu não temo à morte. Pode vir igualmente agora mesmo, como pode chegar
em outra ocasião. Tarde ou cedo virá, e eu prefiro dar a minha vida pelo meu
amigo que oferecê-la inutilmente. Por todas estas razões, oh Lúculo, é que te
imploro, pelos sagrados laços da amizade, pela tua compaixão, pela promessa que
me fizeste, dá-me esta ajuda que te peço, e toma minha vida em troca pela
dele".
Lúculo se pus em pé e se
passeou pela sala, contendo uma grande agitação dentro de si.
— Por que, oh, Marcelo — exclamou
por último— , me submetes a esta terrível prova?
— Minha proposta é fácil de
ser recebida.
— Esqueces acaso que tua vida
me é igualmente preciosa?
— Porém, pensa nesta pequena
criança.
— Efetivamente, eu o
compadeço de alma. Mas pensas que posso receber tua vida em prenda?
— Pois a minha vida já está
dada em prenda, e eu a oferecerei mais tarde ou mais cedo. E por isso te
imploro que me dês a oportunidade de oferecê-la na forma em que possa ser útil.
— Você não morrerá, enquanto
esteja ao meu alcance evitá-lo. tua vida ainda não está em prenda. Pelos deuses
imortais juro que passará muito antes que você possa ocupar um lugar na arena.
— Ninguém me poderá salvar
uma vez que eu tenha sido apreendido, ainda que fizesses tudo quanto puder. O
que podes fazer para salvar a um sobre quem está caindo a inexorável ira do
imperador?
— Eu posso fazer muito para
desviá-la. Você não está em condições de saber quanto se pode fazer. Mas, ainda
quando eu não pudesse fazer nada, contudo não vou aceder a esta proposta agora.
— Se eu mesmo me apresentasse
perante o imperador, ele deveria ouvir minha petição.
— Ele te colocaria em prisão
de imediato, e faria matar ambos.
— Eu poderia enviar uma
mensagem com minha proposta.
— A mensagem nunca chegaria a
ele; ou pelo menos não chegaria até que não fosse demasiado tarde.
— Então, não há esperança
nenhuma? — disse Marcelo tristemente.
— Absolutamente nenhuma.
— E também te negas a
conceder-me minha petição?
— Aí, Marcelo, como poderia
responsabilizar-me pela morte de meu mais querido amigo? Você não tem
misericórdia de mim. Perdoa-me se devo negar-me a aceitar tua temerária
proposta.
— Seja feita a vontade do
Senhor, meu Deus — disse amargamente Marcelo— . Devo, pois, regressar às
pressas. Aí! Como posso eu apresentar-me com esta mensagem de desespero?
Os dois amigos se abraçaram
em silêncio e Marcelo partiu, deixando Lúculo oprimido com sua assombrosa e
temerária proposta.
Marcelo voltou são e salvo às
catacumbas. Os irmãos que ali estavam e que conheciam seus propósitos o
receberam gozosos em meio de sua dor.
A senhora Cecília ainda jazia
vítima daquele torpor, consciente só a medias dos acontecimentos que se
desenvolviam em sua volta. Havia momentos em que sua mente divagava. E em seu
delírio conversava como se estivesse entre cenas felizes de sua vida passada.
Porém na vida das catacumbas, essas alternativas entre a esperança e o temor, o
gozo e a tristeza, a ansiedade que sempre rodeava os refugiados e o ar
demasiado deprimente daquele lugar em si, havia conseguido abatê-la tanto em
sua mente como em seu corpo. Sua frágil natureza sucumbia sob a fúria
implacável daquele tormento, e este último, o mais pesado e amargo dos golpes
que caia sobre ela, tinha completado sua prostração. Dos mortais efeitos de
tudo isso, já não poderia recuperar-se.
Aquela noite todos vigiaram e
oraram ao redor de seu leito. A cada instante se debilitava mais, e, lenta
porém seguramente, sua vida se esfumava, ficando só um desfalecer prolongado.
Daquela descida tão real, já nem a restituição de seu filho poderia salvá-la.
Todavia, embora as faculdades
pensantes e terrenas a haviam deixado e os sentimentos terrenos haviam-se
debilitado, aquela paixão dominante nela nos últimos anos em nada tinha
diminuído em seu poder nela. Seus lábios gelados sussurravam ainda as palavras
bem-feitoras que por tanto tempo tinham sido seu apóio e inspirado seus atos. O
nome de seu menor filho querido o balbuciava como nos últimos hálitos, embora
inconsciente do perigo que o rodeava. Mas o nome de Jesus Cristo era
pronunciado com o fervor mais profundo.
Contudo, chegou o momento
final. Reagindo de seu largo período de calma, seus olhos se abriram brilhantes
e imensos, um colorido de Liz se apossou de seu rosto macilento, e de seus
lábios se ouviram debilmente as palavras: "Vem, Senhor Jesus!".
E com esse clamor, a vida
deixou o corpo, e o espírito purificado da senhora, irmã Cecília, voltava a
Deus, quem o havia dado.
CAPÍTULO 12
O JUÍZO DE PÓLIO
Num edifício não longe do
palácio imperial havia um amplo salão, seu piso era de mármore, que se mantinha
sempre brilhante, e enormes colunas de pórfiro suportavam o teto. No extremo da
habitação havia um altar com uma estatua de uma deidade pagã. E no lado oposto,
os magistrados, luzindo suas togas oficiais, ocupavam assentos relevantes.
Diante deles havia alguns soldados vigiando o prisioneiro.
O único prisioneiro esta vez
era o menino Pólio.
A palidez de seu rosto contrastava
com seu porte esguio e firme. A extraordinária inteligência que o havia
caracterizado sempre não o abandonou nesses momentos solenes. Seus ágeis
olhares captavam todos os detalhes desse cenário. Ele sabia bem a inexorável
condena que pendia iminentemente sobre ele. E contudo, nem o menor traço de
temor ou de indecisão passava sequer por ele.
Já sabia que o único vínculo
que o havia unido à terra tinha partido. As primeiras horas daquela manhã o
haviam saudado com a notícia de que sua mãe tinha sido chamada lá cima. Tinha
sido transmitida por uma pessoa que entendia que o fortaleceria em sua
resolução. Esse mensageiro era Marcelo. O pensamento tinha sido acertado. Enquanto
sua mãe vivia, o pensar nela poderia ter debilitado sua resolução; porém agora,
liberado ela das catacumbas por Cristo, ele estava animado do mais vivo anelo
de partir também. Em sua fé simplíssima acreditava que a morte o uniria num
instante a sua bem-amada mãe. Animado deste sentimento, esperava avidamente o
interrogatório.
— Quem é você?
— Maços Servílio Pólio.
— Que idade tem?
— Treze anos.
diante a mera menção de seu
nome um murmúrio de compaixão se difundiu entre a assembléia, pois esse nome
era muito conhecido em Roma.
— Se te acusa do delito de
ser cristão. O que respondes?
— Excelência, eu não sou
responsável de nenhum delito — disse o menino— . Eu sou cristão, e me compraz
intimamente poder confessá-lo perante os homens.
— É o mesmo que costumam
dizer todos eles — disse indiferentemente um dos juízes— . Todos eles têm a
mesma fórmula.
— Você sabe qual a natureza
de seu crime?
— Eu não cometi crime nenhum!
— disse de novo Pólio— . Minha fé me ensina a temer somente o Deus vivo e
honrar o imperador. Todas as leis juntas sempre obedeci. Não sou, pois, nenhum
traidor.
— Ser cristão é ser traidor.
— Cristão eu sou, porém
traidor, não!
— A lei do estado te proíbe
ser cristão, sob pena de morte. Portanto, se você é cristão, deve morrer.
— Eu sou cristão — repetiu
Pólio firmemente.
— Então deves morrer.
— Amém. Assim seja.
— Mas, rapaz, você sabe o que
é sofrer a morte?
— A morte? Ah! Tenho visto
demasiado da morte durante os últimos meses. E sempre estive à expectativa do
momento em que pudesse oferecer minha vida pelo meu Senhor ressurreto, quando
meu turno chegasse.
— Rapaz, você é muito jovem.
Nós te compadecemos por tua curta idade e falta de experiência. Você foi
instruído especialmente e em forma tão peculiar que apenas pode ser responsável
desta temerária loucura. Por todas estas considerações desejamos fazer-te
concessões. Esta religião que te cega estupidamente é uma idiotice. Você
acredita que um pobre judeu, que foi crucificado duzentos anos atrás, é Deus.
existe por ventura algo mais absurdo que isto? Nossa religião é a religião do
estado. Tem em si o suficiente para satisfazer as mentes dos menores e dos
adultos, dos ignorantes e dos sábios. Deixa, pois, essa néscia superstição e
volta à religião mais sabia e mais antiga.
— Eu não posso.
— você é o último de uma
família nobre. O estado reconhece a dignidade e a nobreza dos Servílio. Teus
antepassados desfrutaram de pompa, de riqueza e de poder. Você agora é um rapaz
pobre e miserável e prisioneiro. Seja, pois, sábio, Pólio. Pensa na glória de
teus ancestrais e deixa de lado o miserável obstáculo que te está segregando de
toda a ilustríssima fama deles.
— Eu não posso.
— Você tem vivido como um
miserável réprobo. O mendigo mais pobre de Roma a passa muito melhor que você.
Seu alimento o obtém com menos esforços e menos humilhação. Seu refúgio está à
luz e ao ar do dia. E sobre tudo, ele sempre está seguro. Sua vida é dele. Não
tem necessidade de viver um permanente temor da justiça de Roma. Mas você teve
que arrastar uma vida, a mais miserável, sempre em necessidade urgente, em
perigo, nas trevas. Que, pois, te deu tua ponderada religião? O que fez por
você aquele judeu deificado? Nada. E pior que nada. Volta, pois, de seguir os
passos deste enganador. Em troca terás a riqueza, a comodidade, os amigos e as
honras do estado e o favor do imperador. Tudo será teu.
— Eu não posso.
— Teu pai foi um súbdito leal
e um valente soldado. Ele morreu pela sua pátria no campo de batalha. Te deixou
muito pequeno, mas como o único herdeiro de todas suas honras e como último
pontal de sua nobre casa. Longe estaria ele de pensar sequer nas pérfidas influências
que te cercariam descaminhando-te à perdição. Tua mãe, com sua mente debilitada
pela dor, se rendeu às insidiosas astúcias dos falsos mestres, e da mesma forma
ela em sua ignorância lavrou sua própria ruína. Se teu pai vivesse, você seria
agora a esperança de sua nobilíssima casta; tua própria mãe também teria
seguido fiel è fé de seus ilustres antepassados. Não valora você a memória de
seu pai? Acaso não te corresponde para com ele um dever filial? Não pensa que é
pecado amontoar desonra sobre o glorioso nome que deves orgulhar-te de levar,
arrojando sobre ele a injúria de tua traição, sendo um nome que te foi
transmitido sem mácula? Deixa, pois, essas ilusões insanas que te cegam. Pela
memória de teu pai, pela honra de tua família, afasta-te deste caminho que
tomaste.
— De forma alguma cometerei
eu essa desonra. Minha fé é pura e santa. Eu posso morrer, mas não posso trair
a meu Salvador.
— Você está vendo que
mostramos misericórdia. Teu nobre nome, assim como tua inexperiência, nos
provocam lástima. Se você fosse um prisioneiro comum te ofereceríamos em poucas
palavras a simples eleição entre retratar-te ou morrer. Porém neste caso
desejamos arrazoar com você, porque não queremos que se extinga uma nobre
família pela ignorância ou obstinação de um herdeiro degenerado.
— Eu agradeço por todas estas
considerações — disse Pólio— , mas esses argumentos não significam nada para
mim ante a suprema autoridade de meu Deus.
— Moleque temerário e
irreflexivo! Acaso você pode encontrar um argumento mais poderoso? A ira do
imperador é irresistível.
— Ainda mais terrível é a ira
do Cordeiro.
— Isso que falas é uma
linguagem sem inteligência. O que é isso que você chama de ira do Cordeiro? Por
que não reflexionas sobre o que está agora sobre tua cabeça?
— Meus irmãos e amigos já
suportaram tudo o que vocês podem fazer ao corpo. E eu confio que Ele me
sustentará com igual fortaleza.
— Mas, poderás suportar os
terrores da arena?
— Eu conto com a fortaleza do
que venceu a morte.
— Poderás enfrentar os leões
e tigres selvagens que se precipitarão contra você?
— Aquele em quem eu confio
não me abandona no momento em que o necessito.
— Você está muito confiado.
— Precisamente confio nAquele
que me amou a tal ponto que se entregou a si mesmo por mim.
— Mas, não pensaste na morte
pelo fogo? Estás pronto a enfrentar a morte nas chamas da pira?
— Ah! Se devo sofrê-las, não
me estremeço. No pior delas conto com meu Deus, e depois para sempre estarei
com Ele.
— Estás possuído do fanatismo
e da superstição. Não sabes o que em realidade te espera. É. Pois, muito fácil
fazer frente às ameaças, é fácil pronunciar palavras e fazer alarde de valor.
Mas o que será de você quando te vejas frente à terrível realidade?
— Pis olharei para Aquele que nunca abandona
os seus na hora da prova.
— Ele não fez nada por você
até agora!
— Ele já fez tudo por mim.
Ele deu sua própria vida para que eu viva. Por Ele eu tenho uma vida que é mais
nobre e que é eterna e que não se pode comparar com a que vocês me tiram.
— Isso não é senão um sonho
teu. Como é possível que um judeu miserável possa fazer isto?
— Ele é a plenitude da
divindade, Deus manifesto em carne. Ele sofreu a morte do corpo para que nós
recebêssemos vida para a alma.
— Mas não há nada que possa
abrir teus olhos? Não te basta que até agora essa louca crença não tenha te
trazido senão miséria e dor? Vas insistir nessa crença? Agora que vês que a
morte é inevitável, não desejar voltar de teus erros?
— Ele mesmo me dá fortaleza
para vencer a morte. Não a temo. A morte para mim não é mais que um simples
passo desta vida de dor e de gemidos a uma bem-aventurança imortal. Bem seja
que eu morra devorado pelas feras selvagens ou pelas chamas, dará o mesmo. Ele
me fortalecerá para que possa permanece-Lhe fiel. Ele mas sustentará e levará
meu espírito no mesmo instante à vida imortal dos céus. A morte, que vocês
temem e com a que me ameaçam, não tem terrores; porém a vida, essa vida a qual
me convidam, tem conseqüências mais terríveis que mil mortes nas chamas.
— Por última vês, rapaz, te
damos uma oportunidade. Menino temerário, acalma-te e medita por um momento em
tua néscia carreira de insensatez. Prescinde por um instante dos dementes
conselhos de teus fanáticos mestres. Reflete em tudo quanto te disseram. Ainda
tem a tua disposição a vida, cheia de gozo e de prazer, uma vida rica em toda
bênção. A honra, os amigos, a riqueza, o poder: tudo é de você. Um nome nobre e
as possessões de tua família estão te esperando. Tudo isso é teu por herança! Hoje
para ganhar estas coisas você não deve fazer nada senão tomar esta copa e
derramar seu conteúdo naquele altar. Toma, filho! É o ato mais simples, o que
se te pede que faças! Resolve-te e executa-o! salva tua vida, salva-te dessa
morte angustiosa!
Todos os olhos dos presentes
estavam cravados em Pólio no momento em que lhe faziam esta última oferta. Pois
até aqui os havia enchido de assombrosa admiração a firmeza com que se
mantinha. Isso sobrepujava o entendimento de todos eles.
Todavia, embora esta última
instancia fosse tão insidiosamente tentadora, não causou o menor efeito. Pois o
menino, com palidez em seu rosto mas com fogo veemente na alma, fez e uma lado
com firme serenidade a copa que lhe era proposta.
— Jamais trairei meu
Salvador, que está ao meu lado!
Diante daquelas palavras se
fez uma pausa momentânea. E depois se ouviu a voz do magistrado supremo da
justiça romana.
— Você pronunciou sua própria
sentença mortal. Tirem-no daqui — ordenou a continuação aos soldados que
estavam presentes.
CAPÍTULO 13
A MORTE DE Pólio
Sê fiel até à morte, e dar-te-ei
a coroa da vida.[65]
A sentença de Pólio foi
sumaríssima e irrevogável. No dia seguinte houve espetáculo no Coliseu. Cheio
até os assentos do topo com a multidão de romanos sedentos e sangue humana, foi
uma demonstração da mesma sucessão de horrores repugnantes que anteriormente
foi descrita.
Novamente os gladiadores
pelejaram e se mataram uns aos outros, individualmente e em massa. Uma
variedade de formas de combate se conheciam na arena; e delas, as que maior
sofrimento mortal infligiam achavam o maior favor dos assistentes.
Outra vez se apresentaram as
cenas intermináveis de derramamento de sangue e de agonia. Os ferozes campeões
do dia receberam as efêmeras felicitações dos volúveis espectadores. De novo o
homem pelejou contra o homem, ou livrou os mais ferozes combates contra o
tigre. Repetiu-se a cena do gladiador ferido que olhava afligido implorando
misericórdia, não vendo outro sinal senão a morte, os polegares dos cruéis
espectadores voltados para baixo.
Para saciar os apetites da
multidão, agora se demandava uma maior e mais desalmada matança. Pois naquele
dia não tinha atração olha o combate entre homens confrontados. Ah! Mas se
sabia já que os cristãos tinham sido reservados para fechar o espetáculo, e a
aparição deles se esperava e se impunha impacientemente.
Lúculo estava entre os
guardas preto do assento do imperador. Mas seu semblante, de alegre que era,
tinha se tornado pensativo.
Muito mais acima, nos
assentos detrás dele, havia um rosto severo e palidíssimo que sobressaía entre
todos, pelo olhar concentrado que dava à arena. Esse rosto era preso de uma
expressão de ansiedade tão profunda que fazia notável contraste com todos os
que se encontravam reunidos em tão vasta assembléia.
De pronto se ouviu o som do
ronco chirriar das grades, e se viu pular o primeiro tigre na arena. Levantou a
cabeça desafiante e se acoitava com sua própria cauda, espreitando ameaçador
tudo em volta, reluzentes os ferozes olhos sobre a enorme massa de seres
humanos que enchiam o imenso anfiteatro.
Não tardou em ouvir-se um
murmúrio. Um rapaz foi lançado na arena.
De rosto pálido e contextura
ligeira, desnutrido em extremo, era nada perante a mole da besta furiosa. E
como nota de escárnio, haviam-no vestido como gladiador.
Porém, a despeito de sua
tenra infância e sua debilidade, não havia nada em seu rosto nem em sua atitude
que revelassem o menor assomo de medo. Mostrava possessão de si mesmo em seu
olhar tranqüila. Avançou para a frente serenamente até o centro da arena, e
ali, à vista de todos, elevou suas mãos juntas, levantou o olhar aos céus e
falou com seu Deus.
Entretanto o tigre seguia
ameaçador, deslocando-se como ao entrar. Tinha vista a criança mas não parecia
ter havido efeito algum. Continuava levantando a visão de seus olhos
sanguinários para as enormes muralhas e de vez em quando lançava selvagens
rugidos.
O homem de rosto severo e
triste olhava absorto como se toda sua alma acompanhasse esse olhar.
O tigre, por sua parte, não
parecia mostrar o menor desejo de atacar o rapaz cristão que seguia orando.
A multidão ficou impaciente.
Surgiram murmúrios e exclamações e gritos com a intenção de enfurecer a fera
para que atacasse sua vítima.
Mas agora, de em meio do
tumulto, surgiu o som de uma voz profunda e terrível:
"Até quando, ó
verdadeiro e santo Dominador, não julgas e vingas o nosso sangue dos que
habitam sobre a terra?" [66]
seguiu-se um silêncio
profundo e aterrorizado. Cada um dos espectadores olhava ao que estava ao seu
lado.
Mas o silêncio foi
interrompido pela mesma voz, que repetiu com ênfase admonitória:
"Eis que vem com as
nuvens, e todo o olho o verá, até os mesmos que o traspassaram; e todas as
tribos da terra se lamentarão sobre ele. Sim. Amém" [67].
"Justo és tu, que és e
que eras, o Santo; porque julgaste estas coisas; porque derramaram o sangue de
santos e de profetas" [68]
"Eles o merecem. Na
verdade, ó Senhor Deus Todo-Poderoso, verdadeiros e justos são os teus
juízos" [69].
Porém agora os murmúrios e os
gritos e clamores se propagaram por todas partes. E não demorou em desaparecer
a causa da perturbação.
— Era um daqueles malditos
cristãos. Era o fanático Cina. O tiveram recuido quatro dias sem dar-lhe
alimentos. Tirem-no! Fora com ele! Joguem-no ao tigre!
Os clamores e as maldições
surgiam de todas partes, tornando-se um único e enorme estrondo. O tigre pulava
cada vez mais freneticamente. Os guardas ouviram as palavras da multidão e se
apressaram a obedecer.
Não demoraram em abrir-se as
grades, e a vítima foi lançada fora. Temeroso, macilento e em extremo pálido,
avançou até o centro com passos trêmulos. Seus olhos mostravam um brilho
extraordinário, suas faces ardiam enrubescidas, seu cabelo descuidado e sua
longa barba estavam emaranhados numa única massa.
O tigre ao vê-lo se
encaminhou pulando até ele. Porém, a uma curta distância, a fera embravecida se
acaçapou. O menino, que tinha estado de joelhos, se pus em pé e olhou para ele.
Por sua parte, Cina não via tigre nenhum. Seus olhares se dirigiam à turba, e
agitando em alto seu braço macilento, clamou muito alto e com os mesmos tons
admonitórios:
— Aí, aí, aí dos habitantes
da terra!
Sua voz foi silenciada por
torrentes de sangue. Não houve senão um pulo, uma queda, e perante os olhos
humanos, nada mais.
E então o tigre se encaminhou
para a criança. Sua sede de sangue havia-se excitado. Seus pelos eretos,
flamejantes os olhos e acoitando-se com a cauda, mantinha-se imóvel frente a
sua presa.
O rapaz viu chegar sua última
porção na terra e novamente se ajoelhou. O populacho ficou mudo e estático,
preso de profunda excitação e em ansiosa espera da nova cena sanguinária.
Aquele homem que havia estado contemplando atentamente, agora se levantou e
permaneceu em pé, ainda olhando a cena que se desenvolvia embaixo. De atrás
dele saíram imediatos gritos que aumentavam em número e volume:
— Abaixo, abaixo, senta! Não
impeças a vista!
Mas o homem, seja que não
ouvia ou bem intencionalmente, não fazia caso. Finalmente o barulho cresceu
tanto que chamou a atenção dos oficiais que estavam embaixo, quem voltaram para
ver qual era a causa.
Lúculo naturalmente foi um
deles. Tendo-se voltado para olhar, viu a cena toda. Deteve brevemente seu
olhar e empalideceu.
— Marcelo! — exclamou. Por um
momento quase caiu para trás, mas não tardou em recuperar-se e se dirigiu
apressadamente à cena do distúrbio.
Mas agora havia estourado um
murmúrio profundo entre o público. O tigre, que havia estado se passeando em
volta do menino uma e outra vez, acoitando-se a si mesmo com crescente fúria,
agora estava agachado, preparado para dar o golpe final.
O menino se levantou. Em seu
rosto resplandecia uma expressão angelical. Seus olhos despediam um brilho de
sublime entusiasmo. Ele já não via esta arena, nem as muralhas gigantescas que
o rodeavam, nem também não as longas fileiras de assentos e as inúmeras caras
hostis; já não via os implacáveis olhos dos cruéis espectadores, nem sequer a
forma imensa do selvagem inimigo.
Seu espírito já parecia
ingressar vitorioso pelas portas de ouro da Nova Jerusalém, e a glória inefável
do pleno dia dos céus inundou-lhe o rosto em seus fulgores.
— Mãe, vou contigo! Senhor
Jesus, recebe meu espírito!
Essas palavras soaram com
toda nitidez e claridade aos ouvidos daquela multidão. Todos permaneceram em
quietude sepulcral, e o tigre pulou. Os seguintes momentos não houve mais que
uma massa que se removia coberta a meias por uma nuvem de pó.
A luta concluiu. O tigre
voltou; a arena tinha sido tingida de vermelho, e sobre ela jaziam os despojos
mutilados do leal e nobre Pólio.
Uma vez ao amparo do silêncio
que se seguiu, deixou-se ouvir um clamor que tinha toda a intensidade de uma
trombeta, e que espantou a cada um dos presentes:
— "Onde está, ó morte, o
teu aguilhão? Onde está, ó inferno, a tua vitória? Graças a Deus que nos dá a
vitória por nosso Senhor Jesus Cristo" [70].
Mil homens se levantaram a
uma em arranques de ira e indignação. Mil mãos se levantaram indicando o
atrevido intruso.
— Um cristão! Um cristão! Às
chamas com ele! Lançai-o aos tigres! lançai-o à arena!
Com tais uivos contestou todo
o populacho à voz admonitória.
Lúculo se fez presente no
lugar no momento preciso para resgatar a Marcelo da turba enfurecida de romanos
que se aprestavam a despedaçá-lo. diria-se que o tigre selvagem que estava na
arena não estava tão enfurecido e tão sedento de sangue como o estavam eles.
Lúculo se precipitou impetuosamente entre todos, qual guarda de feras
selvagens.
Atemorizados pela sua
autoridade, voltaram para trás, tendo sido cercados por soldados.
Lúculo não pôde fazer mais
que entregar-lhes a Marcelo, e conduziu a companhia fora do anfiteatro.
Uma vez fora se encarregou
ele mesmo do prisioneiro. Os soldados os seguiram a distância.
— Aí, Marcelo, Marcelo! Não é
uma loucura que exponhas assim tua vida!
— Eu falei num impulso do
momento. Pois aquele menino a quem eu tanto amava morria assim perante meus olhos!
Não pude conter meu próprio ímpeto! Disso me comprazo e estou muito longe de me
arrepender! Pois também estou pronto a oferecer minha vida por meu Rei e meu
Deus!
— Eu não posso entrar em
razões com você. Teus atos ultrapassam todo argumento e entendimento!
— Não foi minha intenção
entregar-me; mas o que fiz, e como fui inspirado a fazê-lo, me satisfaze
intimamente. Sim, vou gostoso e gozoso seguindo o caminho traçado pelo meu
Redentor, de quem é minha vida, seja que viva ou a ofereça aqui.
— Aí, querido amigo! Não
consideras tua vida?
— Eu amo a meu Salvador mais
que a minha vida!
— Olha, Marcelo, o conhecimento está aberto
perante você. Foge velozmente. Corre, e salva tua vida.
Lúculo disse-lhe isto
apressadamente em voz baixa, abrindo-lhe passo enquanto os homens estavam uns
vinte passos atrás. Havia oportunidade de escapar.
Marcelo pressionou a mão do
amigo.
— Não, Lúculo, longe de mim
seja salvar minha vida com tua desonra. Reconheço e amo esse grande coração que
todo o pospõe pelo amigo, mas não vou te criar dificuldades pela minha amizade.
Lúculo suspirou e seguiu em
silenciosa reflexão.
CAPÍTULO 14
A TENTAÇÃO
Aquela noite Lúculo
permaneceu em sua cela com seu amigo. Buscou todos os argumentos possíveis para
dissuadi-lo de sua resolução. Apelou a todos os motivos que comumente influem
nos homens. Não houve um único médio de persuasão que ele não empregasse. Todos
foram em vão. A fé de Marcelo estava firmemente apoiada, pois estava
fundamentada na Rocha dos Séculos, e nem a tormenta das violentas ameaças, nem
os mais tenros influxos da amizade, puderam debilitar um mínimo sua consciente
determinação.
— Não — disse ele— , meu
roteiro está traçado e eu o escolhi. Seja dou ou alegria o que me toque na
terra, eu seguirei até o fim. Eu sei bem o que me espera. Sopesei todas as
conseqüências de minhas ações, e a despeito de tudo seguirei como me resolvi.
— O que te peço é a coisa
mais simples — disse Lúculo— . Não desejo que deixes tua religião para sempre,
mas somente por enquanto. Se desencadeou uma enfurecida perseguição, e diante
tão terrível fúria todos devem cair, sejam jovens ou velhos, nobres ou
escravos. Você bem viu que não se respeita classe nem idade. Pólio poderia ter
sido salvo se tivesse sido possível, pois havia uma grande simpatia em seu
favor. Era somente uma criança, apensa responsável de seus próprios atos
errados; ele também era nobre, o último de uma antiga família. Mas a lei é
inexorável, e deveu sofrer a pena. Cina também poderia ter sido passado por
alto. Não era outra coisa senão um maluco. Porém, tão veemente é o zelo contra
os cristãos que nem sequer sua evidente insânia o pôde salvar.
— Eu conheço bem que o
príncipe das trevas luta contra o povo de Deus, o qual está fundado sobre a
Rocha, e as portas do inferno não podem prevalecer contra ele. Acaso não tenho
visto sofrer igualmente os bons, os puros, os santos e os inocentes? Acaso não
sei que há uma guerra sem misericórdia contra os cristãos? Eu sabia muito bem
tudo isso antes de me converter. E sempre estive preparado para enfrentar as
conseqüências correspondentes desde que conheci pessoalmente a Jesus, o Cristo,
como meu Senhor e Salvador.
— Escuta, querido Marcelo. Te
disse que te pedia só uma coisa simplicíssima. Pois esta religião que tanto
aprecias, não é necessário que a abandones. Conserva ela, se assim deve ser.
Mas adapta-te às circunstâncias. Já que a tormenta está agravando-se, é
inteligente inclinar-se e deixá-la passar. Toma uma atitude de homem interior,
e não de fanático.
— O que você quer que eu
faça?
— Isto: dentro de uns poucos
anos acontecerá uma grande mudança. Bem a perseguição se desvanecerá, ou bem se
gere uma reação, ou o imperador pode morrer, e outros governantes de diferentes
sentimentos o sucederão. Então será legal se fazer cristão. Nesse momento toda
esta gente que hoje é afligida poderá voltar de seus esconderijos e ocupar seus
antigos lugares, e surgir para a dignidade e a riqueza. Tem presente, pois,
tudo isto. E portanto, não jogues assim infrutiferamente tua vida que ainda
pode ser de serviço para o estado e de felicidade para você. Por você mesmo
cuida-a e preserva-a. Olha em volta agora. Considera todas estas coisas. Deixa
a um lado tua religião por um breve lapso. Assim poderás escapar do perigo
presente, e quando voltem tempos mais felizes, poderás voltar a ser cristão em
paz.
— Lúculo, isso é impossível.
É abominável a minha alma. Poderia acaso ser eu um nobre hipócrita? Se você
compreendesse o que em mim tem se realizado, não me pedirias nem por um momento
que perjure minha de alma imortal perante o mundo e perante meu Deus. é muito
melhor morrer imediatamente pelas mais severas torturas que ao corpo possam
inferi-lhe.
— Você assume posições tão
extremas que me fazes desesperar de tua vida, e da esperança de salvar-te. Não
queres parar a contemplar este assunto racionalmente? Não é questão de se fazer
perjuro, senão uma tática. Não é hipocrisia, mas sabedoria.
— Deus não permita que eu
faça isto, de pecar contra Ele.
— Atenta para isto. Não se
beneficiará somente você, senão muitos mais. Estes cristãos a quem você ama,
dessa forma serão ajudados por você muito mais eficazmente que agora. Em tua
presente situação você sabe muito bem que não podem viver como antes, da
simpatia e da ajuda daqueles que professam a religião do estado, mas que em
segredo preferem a religião dos cristãos. Acaso vás chamar de hipócritas e
perjuros a esses homens? Não são eles antes bem seus benfeitores e amigos?
— Estes seres jamais chegaram
a conhecer a verdadeira fé e a esperança cristã que eu tenho. Eles nunca
conheceram o novo nascimento, a nova natureza divina, a presença do Espírito
Santo morando em seus corações, a comunhão com o Filho do Deus vivente, como eu
o experimentei. Eles não conheceram o amor de Deus que brota em seus corações
para dá-lhes novos sentimentos, esperanças e desejos. Para eles simplesmente
simpatizar com os cristãos e ajudá-los é uma coisa boa; porém para o cristão
que é suficientemente vil para abjurar de sua fé e negar seu Salvador que o redimiu,
nunca haverá suficiente generosidade no coração e em sua alma de traidor para
ajudar seus irmãos abandonados.
— Então, Marcelo, não me
resta senão uma única oferta mais que eu possa te fazer, e depois irei embora.
É minha última esperança. Não sei se será possível ou não. Porém, tentarei, se
somente pudesse lograr que desses teu consentimento. Se trata do seguinte: você
não precisa abjurar de tua fé; não precisas oferecer sacrifícios aos deuses,
nem precisas fazer a menor coisa que desaproves. Desejamos que se esqueça o
passado. Volta outra vez — não de coração, logicamente, mas de aparência— ao
que eras antes. Você era uma alegre e festivo soldado dedicado ao cumprimento
de seu dever. Nunca tomaste parte nos serviços religiosos. Rara vez estiveste presente
nos templos. Você passava o tempo no quartel, e tuas devoções eram de caráter
privado. Recolhias sabedoria dos livros escritos por filósofos e sacerdotes.
Faça tudo isso novamente. Simplesmente, volta a teus deveres.
"Apresenta-te em público
juntamente comigo; novamente voltemos a nossas amigáveis conversas, e dedica-te
a teus antigos objetivos na vida. Isso será muito fácil e agradável de fazer e
não requer nada que seja ruim e desagradável. As altas autoridades passarão por
alto tua ausência e teu mal proceder, e se eles desejam que voltes a ocupar
tuas anteriores honras, com todo podes ser colocado novamente no mando de tua
legião. Todo irá bem. Se necessitará um pouco de discrição, um sensato
silêncio, uma aparente volta a teu antigo turno de deveres. No caso de que
permaneças em Roma, se pensara que as notícias de tua conversão ao cristianismo
eram erradas, e se vas para o exterior, não se saberá de mais nada".
— Não, Lúculo; ainda quando
eu consentisse no plano que me propões, não seria factível, por muitas razões.
Foram feitas proclamas contra mim; foram oferecidas recompensas pela minha
apreensão; e sobre tudo, minha última aparição no Coliseu perante o próprio
Imperador foi suficiente para descartar toda esperança de perdão. Mas eu não
posso consentir. Meu Salvador não pode ser adorado desta forma. Seus seguidores
devem confessá-lO abertamente. Ele diz: "todo aquele que me confessar
diante dos homens também o Filho do homem o confessará diante dos anjos de
Deus" [72]. Pois negá-lO em minha vida
ou em meus atos é precisamente o mesmo que negá-lO na maneira formal que
prescreve a lei. Isso eu não posso fazê-lo. Aquele que me amou primeiro, eu o
amo, porque Ele, quando me amou, colocou sua vida em meu lugar. Meu mais
sublime gozo é proclamá-lO perante os homens; morrer por Ele será o ato mais
nobre que eu possa fazer, e a coroa de mártir será minha recompensa mais
gloriosa.
Lúculo não disse mais nada, tendo-se
convencido de que toda persuasão era inútil. O resto do tempo o passaram
conversando sobre outras coisas. Marcelo não desperdiçou estes últimos momentos
preciosos que passo com seu amigo. Expressando-lhe a mais profunda gratidão por
seu nobre e generoso afeto, procurou compensá-lo explicando-lhe e
familiarizando-o com o mais elevado tesouro que o homem possa possuir: a fé em
Cristo Jesus.
Lúculo o ouvia pacientemente,
mais por amizade que por interesse. Contudo, pelo menos algumas das palavras de
Marcelo ficaram indelevelmente impressas em sua memória.
No dia seguinte se realizou o
juízo correspondente. Foi sumario e formal. Marcelo se mostrou impassível e
recebeu sua condena. A ele não seria concedido morrer devorado pelas feras
selvagens nem por mãos de gladiadores, senão por meio de tormentos mais
refinados, os do fogo.
Foi, pois, na pira, onde tantos cristãos
haviam dado já seu testemunho da verdade, onde Marcelo também confirmou sua fé
rendendo sua vida. A pira foi colocada no centro mesmo do Coliseu, tendo-a
rodeado de enormes feixes de combustível com especial prodigalidade.
Marcelo ingressou conduzido
por guardas seletos quanto a sua maior crueldade, os que lhe davam socos e o
ridicularizavam com antecipação aos horrores da pena final. Ao dirigir seu
olhar resoluto e sereno em volta do vasto círculo de rostos de homens e
mulheres, a qual mais duro, cruel e impiedoso, contemplou satisfeito essa arena
onde milhares de cristãos o haviam precedido na partida instantânea para
reunir-se às gloriosas hostes de mártires que por sempre adoram em volta do
Trono. Sua mente voltava para aquelas crianças cujo sacrifício ele tinha
presenciado ainda desde as trevas, revivendo nele agora o hino triunfal com que
haviam desfilado:
Ao que nos amou,
E nos lavou de nossos pecados
com seu sangue...
Chegou o momento em que os
guardas o trataram com dispêndio de rudeza, a qual por ele não resisti-lhes não
merecia, e o conduziram à pira, à qual o amarraram com fortes correntes, que
fizeram impossível a fuga na qual ele nem pensou.
Antes o ouviram sussurrar:
"Estou pronto para ser oferecido... e o momento de minha partida chegou...
Pelo resto, me está guardada a coroa de justiça, a qual o
Senhor, justo juiz, me dará hoje".
Aplicaram a tocha que
originava enormes labaredas, e densas nuvens de fumaça ocultavam o mártir
momentaneamente. Ao aclararem, foi visto erguido em meio do fogo, elevados o
rosto e as mãos ao céu.
As chamas se intensificavam e
cresciam em volta dele. Mais e mais se aproximavam dele, e flamas devoradoras o
envolviam em círculos de fogo. De pronto o cobria um véu de fumaça, que depois
desaparecia diante do acoite poderoso das línguas de fogo.
Porém o mártir permanecia
erguido, sofrendo com calma e serenidade a pavorosa agonia, como aferrado a seu
Salvador. Al Ele desceu ante a fé de seu mártir, embora ninguém mais o visse;
sendo que seu braço eterno não tinha se encurtado em volta de seu fiel seguidor
até a morte, inspirado e sustentado pelo Espírito.
As chamas já não somente
cresciam e se aproximavam do mártir, senão que ele mesmo se converteu em chama.
A vida foi violentamente atacada até ser arrebatada, e as asas do espírito se
dispuseram a transladá-la fora da dor e da morte, para o paraíso.
A vítima finalmente se
sobressaltou, convulsionada, como se a traspassasse irresistivelmente uma dor
mais aguda, a qual por último conquistou. Levantou os braços em alto, e os
agitou debilmente. Logo, em derradeiro esforço lançou um agônico clamor com voz
clara para o ouvido de todos:
-Vitória!
Tinha sido o último hálito
nesta vida, e caiu para a frente inflamado em chamas; e o espírito de Marcelo "havia
partido para estar com Cristo, o qual é muito melhor" [73].
CAPÍTULO 15
LÚCULO
Um espectador houve naquela
cena de tortura e de morte cujo rosto, que experimentava a mais profunda
agonia, sempre esteve fixo em Marcelo, cujos olhos foram olhos que viram cada
um dos atos e expressões da vítima, e cujos ouvidos recolheram cada palavra.
Longo tempo depois que todos tivessem partido, ele permanecia imóvel, sendo o
único ser humano no enorme círculo de assentos vazios. Finalmente, se levantou
para ir-se.
Longe estava dele a
elasticidade característica de seus passos. Se deslocava com ar cabisbaixo e
fraquíssimo; seu olhar de abstração e da dor de que ele todo estava embargado,
o faziam aparecer como um que tivesse sido repentinamente vítima de uma doença
mortal. Fez acenos a alguns dos guardas, que lhe abriram os portais que
conduziam para a arena.
— Trazei-me para cá uma urna
cinerária — disse ao pessoal que se achava nas imediações, ao mesmo tempo que
se encaminhava até as brasas que já se extinguiam.
Uns quantos fragmentos de
ossos carbonizados e feitos pó pela violência das chamas era tudo quanto
restava do corpo de Marcelo.
Tomando silenciosamente a
urna que lhe alcançou um dos guardas admirado, Lúculo começou a reunir todos os
fragmentos humanos e o pó que pôde achar.
No momento em que estava
saindo, se aproximou dele um ancião, diante do qual se deteve mecanicamente.
— O que desejas pedir-me? — lhe
disse cortesmente.
— Meu nome é Honório. Sou um
dos anciãos dos cristãos. Um amigo nosso muito querido foi sacrificado neste
lugar esta noite, e eu venho confiando que se me permitirá recolher suas
cinzas.
Lúculo lhe respondeu com
afabilidade:
— É um acerto que tenhas te
dirigido a mim, venerável mestre. Se tivesses descoberto teu nome a um outro,
terias sido capturado imediatamente, porque está se oferecendo um resgate por
você. Mas não posso te conceder o pedido que me fazes. Marcelo morreu, e suas
escassas cinzas estão nesta urna. Serão depositadas num túmulo no mausoléu de
minha família com todas as cerimônias de honra, porque ele foi meu mais querido
amigo, e sua perda faz desta terra um deserto para mim, e do resto de minha
vida a carga mais penosa.
Honório balbuciou com
profundo entusiasmo:
— Compreendo que você não
pode ser outro senão Lúculo, de quem sempre o ouvi falar com palavras de afeto.
— Eu sou. Jamais houve dois
amigos mais leais que nós dois. Se tivesse sido possível, eu teria evitado o
sacrifício. Jamais teria sido detido, se ele mesmo não se tivesse lançado nas
mãos da lei, como o fez. Oh, destino inescrutável! Precisamente quando eu tinha
tomado todas as disposições para que jamais pudesse ser capturado, mas ele em
pessoa se enfrentou ao próprio imperador, e assim foi como u com minhas
próprias mãos fui obrigado a conduzir o ser que mais amava à prisão e à morte.
— O que para você é perda,
para ele é o ganho mais incomensurável [75]. Pois ingressou no reino de
felicidade imortal.
Lúculo exclamou
profundamente:
— Sua morte foi todo um
triunfo. Eu observei antes a morte de muitos cristãos, mas não fui tão
impressionado por sua esperança e confiança. Marcelo enfrentou a morte como se
essa fosse a bênção mais feliz.
— Assim foi quanto a ele,
como também o foi quanto a muitíssimos outros, cujos despojos jazem no infausto
confinamento onde estamos obrigados a morar. A eles quero fazer chegar as
cinzas de Marcelo. Não conviria que assim compartissem tumbas?
— Venerável Honório, eu havia
abrigado a esperança, desde que meu amado amigo me deixou, que pelo menos teria
o prazer de chorá-lo e de prodigalizar a seus despojos as últimas honras
piedosas, e de derramar meu pranto sobre seu túmulo.
— Mas, oh nobre Lúculo, não
teria preferido teu amigo que lhe fosse dada sepultura com as cerimônias
simples de sua nova fé, e um lugar de repouso juntamente com os outros mártires
com cujos nomes está ele relacionado para sempre?
Lúculo ficou possuído de um
profundo silêncio, e depois de ter pensado por algum tempo, finalmente falou:
— Não cabe a menor dúvida
quanto aos desejos dele. Eu me rindo diante deles, e me privo da honra de
oferecer-lhe os ritos funerários. Leva-o, venerável Honório. Porém, permite-me
que assista ao serviço de sepultamento. Não poderias consentir que um soldado,
a quem conhecem somente como seu inimigo, ingresse nesse seu reino e presencie
seus atos?
— Diante de ti nossas portas
e corações se abrem no mais cordial recebimento, oh nobre Lúculo, como o foi
com Marcelo antes que você, se por ventura recebesses entre nós a mesma
bem-aventurança que lhe foi concedida a ele.
— Não alimentes uma tal esperança — disse
Lúculo— . Eu sou muito diferente de Marcelo em gostos e em sentimentos. Eu
poderia aprender a sentir benevolência para com vocês, e ainda admirá-los, mas
nunca poderia unir-me a vocês.
— Vem conosco, como seja, e
presencia os serviços funerários de teu amigo. Um mensageiro virá por você
amanhã.
Lúculo fez um sinal se
assentimento, e depois de entregar-lhe a preciosa urna a Honório, se encaminhou
tristemente para sua casa.
No dia seguinte, em companhia
de um mensageiro, se dirigiu às catacumbas. Ali se encontrou com a comunidade
dos cristãos e contemplou este lugar em que moravam, o qual já tinha sido lhe
referido precisamente por seu amigo, tendo assim uma idéia prévia de sua vida,
seus sofrimentos e seus afetos.
De novo as vozes dolentes e
lamentações encheram as tenebrosas abóbadas e ecoaram por todos os
intermináveis corredores, por outro irmão cujo pó se entregava ao pó do túmulo.
Mas o mesmo pesar que falava da dor mortal foi substituído por uma sublime e
inspirada certeza que expressava a fé da alma que aspira, e uma esperança plena
de um desejo vivo de su amado Senhor.
Honório tomou em suas mãos o
precioso rolo, as Palavras de vida, cujas promessas eram tão poderosas que
sustentavam em meio das mais pesadas cargas e aflições, e em tom solene leu
aquela parte de 1 Coríntios, que em todas as épocas e em todos os climas tem
sido tão preciosa ao coração que se remonta além dos reinos do tempo em procura
de consolo na perspectiva da ressurreição.
Seguidamente levantou sua cabeça
e em tons fervorosos ofereceu uma oração ao Deus único e santo nos céus, em
nome de Jesus Cristo, o divino Mediador, por quem a morte e a sepultura foram
vencidas e assegurada a vida eterna.
O rosto pálido e triste de
Lúculo era particularmente visível entre os dolentes. Embora ele não fosse
cristão, contudo admirava tais doutrinas gloriosas, e escutava com reverência
essas exaltadas esperanças. A ele foi concedido colocar as amadas cinzas dentro
do lugar de repouso final; foram seu olhos os últimos que se pousaram naqueles
despojos amados; suas mãos colocaram em seu lugar a pedra em que havia de
gravar-se o nome e o epitáfio de Marcelo.
Lúculo voltou para sua casa,
mas era um homem novo. Sua euforia pessoal parecia ter sido subjugada sob as
severas aflições que havia sofrido.
Havia falado a verdade quando
dissera que não era cristão. E embora a morte de seu amigo lhe houvesse
embargado o coração de tristeza, não havia dor pelo pecado, nem arrependimento,
nem anelo de conhecer o verdadeiro Deus vivente. Tinha perdido aquele
habilidade de gozar-se no mundo, mas não havia conseguido nenhuma outra fonte
de felicidade.
Porém a memória de seu amigo
teve a virtude de produzir um efeito, sentiu uma profunda simpatia pelo pobre
povo oprimido com quem Marcelo tinha confraternizado. Admirava sem compreender
suas circunstâncias e os compadecia pelos imerecidos sofrimentos. Tinha
consciência de que toda a virtude e bondade que pudessem ficar ainda em todo o
império romano eram possuídas por esses coitados réprobos.
Foram esses sentimentos os
que o levaram a prestar-lhes ajuda. Ofereceu-lhes a amizade e as promessas de
auxílio que uma vez havia prodigalizado a Marcelo. Seus soldados não capturaram
nenhum outro cristão, ou se o faziam, sempre se ouviria posteriormente que
tinha escapado de algum modo inevitável. Sua alta posição, sua vasta riqueza,
sua ilimitada influência, tudo estava ao serviço dos cristãos. Seu palácio
chegou a ser bem conhecido deles, como seu mais seguro refúgio e lugar de
ajuda, e seu nome gozava da honra de ser o mais poderoso de seus amigos
humanos,
Mas todas as coisas chegam a
seu fim, e assim também os sofrimentos dos cristãos e a amizade de Lúculo
chegaram a seu término. Aproximadamente um ano após a morte de Marcelo, o
severo imperador Décio foi destronado, e um outro assumiu o poder imperial. A
perseguição cessou. A paz voltou às assembléias dos cristãos, e eles saíram das
catacumbas para viver gozosos na saudável luz do dia. De novo podiam ouvir os
seres humanos os louvores ao Deus e Redentor deles, e de novo reiniciaram sua
interminável luta contra as hostes do mal.
Passaram os anos, e Lúculo
não experimentou mudança alguma. Quando Honório saiu das catacumbas, foi levado
por Lúculo a seu palácio, e morou sob seu amparo pelo resto de seus dias na
terra. Ele se esforçou por pagar a dívida de gratidão a seu nobre benfeitor,
fazendo-lhe conhecer toda a Verdade. Porém morreu sem ter podido desfrutar do
gozo pelo que tanto tinha orado.
No final, a bênção chegou,
mas depois de ter transcorrido muitos anos. quando já Lúculo se aproximava aos
limites da velhice, chegou a ouvir a voz do Salvador. Mas longos anos tinham se
passado desde que o mundo havia perdido seus encantos para ele. As riquezas, a
honra, o poder já não o satisfaziam em absoluto. Sua vida se deslizava sob uma
sombra de tristeza que ninguém podia curar. Mas o Espírito do Deus vivo chegou
a apossar-se dele, e graças a sua divina mediação pôde por fim regozijar-se no
amor do Salvador, de cuja obra sobre o coração humano tinha presenciado tantas
e tão contundentes provas.
Longos séculos transcorreram
sobre a cidade dos Césares, desde que a perseguição de Décio lançou os humildes
seguidores de Jesus nas lôbregas e gélidas catacumbas. Tomemos a Via Ápia e
vejamos o que nos ensina.
Diante de nós se estende a
longa fileira de tumbas até a milionária cidade. Aqui os poderosos dessa Roma
acharam um lugar de repouso, e ainda até ali levaram as pomposas mostras de
quanto podem a riqueza, a glória do mundo e o poder. Embaixo de nós estão
ocultas os rudes túmulos daqueles que em vida foram reprovados como indignos de
respirar o ar livre sob o sol do céu.
Observai a mudança! Em volta
nossa estão aqueles túmulos senhoriais todos em ruínas, sua santidade
profanada, suas portas derrubadas e seu pó levado pelo vento. Os nomes daqueles
que ali foram sepultados ninguém lembra; o império que fundaram caiu, as
legiões que os conduziram a mil conquistas dormiram o sono do qual não
despertarão até a segunda ressurreição.
Mas a memória dos perseguidos
que jazem embaixo, a assembléia de Deus da terra contempla com revelação. Seus
sepulcros foram convertidos em santuários de peregrinação; e essa obra na qual
desempenharam eles um papel tão nobre, foi transmitida a nós para que a
continuemos até que Jesus volte.
Humildes, depreciados,
proscritos, afligidos, a fama se negou a assentar seus nomes nos rolos da
história; contudo, e isto pelo menos sabemos bem, seus nomes estão escritos no
Livro da Vida, e sua eterna comunhão será com aqueles de quem está escrito:
Estes são os que vieram da
grande tribulação,
e lavaram as suas vestes
e as branquearam no sangue do
Cordeiro.
Por isso estão diante do
trono de Deus,
e o servem de dia e de noite
no seu templo;
e aquele que está assentado
sobre o trono
os cobrirá com a sua sombra.
Nunca mais terão fome, nunca
mais terão sede;
nem sol nem calma alguma
cairá sobre eles.
Porque o Cordeiro que está no
meio do trono os apascentará,
e lhes servirá de guia para
as fontes das águas da vida;
e Deus limpará de seus olhos
toda a lágrima. [76]
[1] (Nota da Tradutora) Erro
do original: os tigres são naturais da Ásia, e não da África.
[2] Esta perseguição pelo Imperador
Décio foi desde o ano 249 ao 251 D.C., ou seja que durou por volta de dois anos
e meio. Décio morreu em batalha com os godos, por volta de fins de 251 D.C.
(Nota do original)
[3] Atos 10:1-2
[4] Apocalipse 15:3-4
[5] Apocalipse 21:3-4
[6] 1 Timóteo 3:16
[7] Filipenses 1:23
[8] Efésios 5:2
[9] Mateus 27:46, Marcos 15:34
[10] João 19:30
[11] Lucas 19:10
[12] Romanos 10:10
[13] Efésios 2:8-9
[14] Romanos 6:23
[15] João 5:24
[16] João 10:18
[17] Hebreus 11:13
[18] 1 Tessalonicenses 4:16-17
[19] 1 Coríntios 1:26
[20] Mateus 11:5
[21] Mateus 26:41, Marcos 14:38
[22] Apocalipse 1:8,11; 21:6; 22:13
[23] 2 Timóteo 4:8
[24] João 16:33
[25] Mateus 19:14; Marcos
10:14; Lucas 18:16
[26] 2 Coríntios 6:17
[27] 1 Coríntios 10:13
[28] Romanos 6:4
[29] Mateus 28:19
[30] Mateus 26:30, Marcos 14:26
[31] 2 Timóteo 3:12
[32] Tito 3:5
[33] Hebreus 11:25
[34] Apocalipse 18:2
[35] Apocalipse 18:5-6
[36] Apocalipse 18:7
[37] Apocalipse 18:8-10
[38] Apocalipse 18:15-20
[39] 1 Coríntios 15:52
[40] 1 Coríntios 15:52
[41] Hebreus 10:36
[42] Apocalipse 12:10-11
[43] Apocalipse 6:10
[44] Apocalipse 18:2,4
[45] Mateus 24:44; Lucas 12:40
[46] João 16:33a
[47] João 16:33b
[48] João 14:3
[49] Romanos 8:37
[50] Romanos 8:18
[51] Tiago 1:3
[52] Salmo 80:4-16
[53] Apocalipse 2:7
[54] Apocalipse 2:10
[55] Apocalipse 2:17
[56] Apocalipse 2:26,28
[57] Apocalipse 3:5
[58] Apocalipse 3:12
[59] Apocalipse 3:21
[60] 2 Coríntios 5:1
[61] João 15:13
[62] 2 Coríntios 4:8
[63] Filipenses 4:7
[64] Mateus 21:16; Salmo 8:2
[65] Apocalipse 2:10
[66] Apocalipse 6:10
[67] Apocalipse 1:7
[68] Apocalipse 16:5b:6a
[69] Apocalipse 16:6c-7b
[70] 1 Coríntios 15:55,57
[71] Mateus 4:9
[72] Lucas 12:8; Mateus 10:32
[73] Filipenses 1:23
[74] Provérbios 10:7
[75] Filipenses 3:7
[76] Apocalipse 7:14-17
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